Já fazia tempo que não treinava em Lisboa e apesar dos treinos em Faro serem... hum... pois, levezinhos, digamos assim, não me foi muito difícil este retorno (por um dia) ao meu dojo de sempre.
E que belo dia para treinar estava ontem. Depois de atravessar o Alentejo às 2 da tarde com o termómetro do carro a marcar 40 graus lá fora (e lá dentro também, pois o ar condicionado do meu Corsa não funciona), os trinta graus de Lisboa pareciam-me um sinal evidente que me encontrava agora num clima fresco e ameno. No dojo, as novidades não eram muitas: mais um bogu* (estreado ontem) mais dois ou três principiantes (dou-lhes até ao fim do mês?) e de resto, as mesmas caras e a mesma boa vibração de sempre.
Estava cheio de vontade de fazer ji-geiko com o sensei Osaka mas ele está "meio-lesionado" e acabei por nem fazer ji-geiko tampouco. A aula girou toda em torno de kihon, kiri-kaeshi e kakari-geiko.
Bastante energética, foi uma daquelas aulas em que nem temos tempo para ficar cansados e apenas alinhamos sucessivamente nos diferentes exercícios, uns atrás dos outros, sempre a bom ritmo, sempre sem parar... no fim, estava um bocadinho cansado mas as horas que tenho passado no "Centro do Ferro" (grande nome para um ginásio) a malhar, acabaram por valer a pena.
No fim, as palavras do sensei foram dedicadas exclusivamente a um dos géneros de kakari-geiko que fizemos e, por serem uma coisa muito expecífica, não têm grande relevo fora do contexto em que foram ditas.
Assim sendo, vou parar este assunto por aqui e escrever, já de seguida, um outro pequeno texto baseado num pequeno incidente/acontecimento que se passou ontem comigo no treino e que se intitula:
O KENDO SÃO OS OUTROS
Rei
Já várias vezes que vi, em foruns e outras escritas dedicadas ao kendo, conversas e textos relacionados com a etiqueta (rei-ho) no dojo e com os "salamaleques" (como lhe chamam alguns). Ontem, uma das pessoas mais dedicadas ao kendo que conheço, e das que mais respeito, num impulso muito próprio da juventude, atropelou-me literalmente durante um exercício.
Eu explico, eu tinha acabado de fazer um kakari-geiko e depois de ter sido kakarité, seguindo a prática corrente do nosso dojo, preparava-me para ser motodachi. Quando me virei reparei que já tinha o meu oponente seguinte pronto para fazer o exercício.
Até aqui nada de especial, não fosse o caso de ele já estar em cima de mim e de eu comer imediatamente com um men, "a abrir", e de nem ter tido tempo de me preparar para melhor cumprir o meu papel. Mas a coisa passou, recuperei a compostura e o jovem fez o seu (excelente) kakari-geiko cheio de velocidade e precisão.
No fim, ainda "injectado" de energia, simplesmente virou-me as costas e foi imediatamente ser motodachi de um outro praticante.
Ora, se uma vez ainda passa (é o passas), duas já é demais. Eu sempre fui partidário dos salamaleques "tradicionais" do kendo, mas desta vez, senti como nunca tinha sentido antes, para que serve aquela coisa toda da etiqueta e das saudações e tudo mais.
Se eu não tivesse estado lá ele não tinha feito aquele kakari-geiko. É tão simples quanto isso. Não importa a dedicação que demonstrasse, a vontade de fazer kendo que tivesse, SE EU NÃO ESTIVESSE LÁ, para ser motodachi, ele não faria o kakari-geiko.
Por extensão, pode-se dizer, sem qualquer receio de faltar à verdade, que, se não existir um oponente/colega/motodachi (chamem-lhe o que quiserem) não há kendo.
Se há coisa que o kendo ensina é que somos todos dependentes uns dos outros. E é (só?) por isso que é importante demonstrar o respeito que temos pelos nossos colegas de prática antes, durante e depois do keiko.
E para dar uma ideia de como "o outro" é um factor importante na prática, pensem como fariam kata sozinhos... ou então, nas diferenças que há, por exemplo, em fazer ji-geiko com um colega do vosso nível e com um 7º dan... olha, como o senhor Osaka.
Em resumo, ninguém faz kendo sozinho. Se calhar, sozinho, até se pode fazer alguma coisa parecida, mas essa coisa não é kendo de certeza absoluta.
O nosso kendo são os outros.
*Parabéns Pedro.