28.11.05

ATINGIR O KI PELO MÉTODO DO KATA (2ª PARTE)


Ora cá estamos com a conclusão acerca do método do kata. Esta tradução foi difícil. Agradeço eventuais sugestões caso alguém, diante do original, que se encontra página de Tokitsu sensei (ver links), encontrar uma tradução mais adequada para alguma passagem.

Nessa situação sente-se uma plenitude. Neste caso, porque mesmo sem ter consciência de tal, fomos guiados por uma sensação especial e agimos entregando-nos a essa sensação. No momento do impacto, sentimos uma sensação de fusão com algo. É o sentimento do ki. O qual está presente na sensação de perfeita execução técnica no decurso do combate. E não só está presente, como é modulado pela técnica.
Ao exercitar kata, banhamo-nos nessa sensação moldada em formato de técnica.
Quando se estuda os kata clássicos, eles comportam os elementos necessários para atingir um estádio de combate superior. Muitos kata foram deformados no decurso da sua transmissão. Mas um kata no momento em que é formado, mostra um estado idealizado de técnicas efectivas de formação para combate. O estado idealizado da técnica corresponde ao mais alto grau de uma técnica, o de fusão da técnica corporal e do espírito. O ki deve circular naturalmente. Podemos dizer que exercê-lo dessa maneira, com e na técnica, equivale a um princípio energético. Se um gesto técnico é perfeito, é porque está em harmonia com o princípio de eficácia que gere o ki dessa técnica. A forma perfeita de uma técnica que não tenha eficácia não faz sentido, tal como não existe um sabre soberbo que não corte. De certa maneira, toda a perfeição técnica é um invólucro para um princípio de eficácia.
Vimos que o termo ki cobre sensações vagas e muito vastas. Nós utilizamo-lo no budo modelando-o de uma forma técnica.
Dizia-se a propósito de um mestre:
“Quaisquer que sejam os seus gestos, constituem uma técnica perfeita.”
Porque, justamente, ele era capaz de seguir o ki de uma maneira não-formal, mas profundamente técnica. Tinha de tal maneira bem integrado as técnicas, que os seus gestos estavam em conformidade com o princípio subjacente das mesmas, no sentido mais lato do termo kata. É o que chamamos ultrapassar a forma apreendendo-a: ultrapassar o kata penetrando profundamente no kata.
O kata mostra um modelo técnico do combate, elaborado de tal forma que nos convida, e nos guia, na escalada até ao cume. O kata apoia-se assim sobre um sistema onde o saber se situa mais acima e os praticantes tentam elevar-se para o atingir. A forma técnica é um meio de ascenção e não um objectivo por si só. O objectivo do kata é de se ultrapassar a si mesmo.
Ao observarmos o que se passa no nosso espírito durante um treino mais duro, em que procuramos adquirir uma melhor técnica, encontramos a imagem do nosso mestre, aquele que no-la mostrou ou ensinou. Os nossos gestos não estão ligados à imagem de perfeição representada pelo mestre quando, por exemplo, nos treinamos a sós?
No processo de treino, esforçamo-nos para fazer (as técnicas) tão bem como os nossos sempai, como o sensei, depois desejamos ultrapassá-los; vencê-lo. Quanto mais pesada é essa imagem mais ela nos persegue. Lutar contra essa imagem, é o processo do treino: a repetição.
Esse encadeamento psicológico é característico da aplicação do método do kata.
Uma melhor compreensão da lógica inerente ao método do kata e da sua ligação ao ki permite-nos avançar na prática do budo. Para isso é indispensável saber observar e tratar os kata sob um ângulo diferente. O kata não é uma simples codificação técnica, não é nem molde, nem cerimónia, nem combate imaginário.
O kata é um método de treino que exige algumas chaves para se poder usufruir plenamente. Desenvolveremos esta ideia mais adiante.

Próximo artigo sobre utilização do ki. O método energético

PRÉMIOS USAGI SAN

Nos torneios de Sumo, para além do “Prémio Fighting Spirit”, existem ainda mais dois tipos de prémios. Um “Prémio Técnico”, chamemos-lhe assim, e um “Prémio de Desempenho Extraordinário”.
Roubando a ideia aos gordos do Sumo, e referente ao campeonato de sábado passado, passo a apresentar a lista de Prémios Usagi San:

Prémio Fighting Spirit: António Gabriel (tá tudo dito)
Prémio Fighting Spirit: Roberto Ferreira (mais sorte para a próxima)
Prémio de Desempenho Extraordinário: Rui Araújo (kiai, meu, kiai)
Prémio Técnico: Henrique Martins (muito bom)
Prémio Técnico: Joni Duarte (é um verdadeiro japonês falsificado)

Para além destes, criei agora mesmo um novo prémio, que acho que vai ter muita saída nos próximos campeonatos e torneios, que é o Prémio Porra Que Já Tava Farto De Ir A Campeonatos E Ser Eliminado Nas Pools Ou Na Primeira Eliminatória Directa e que é atribuído a: João Lourenço

Estes prémios referem-se, como devem ter reparado, apenas ao sector masculino. Ao contrário do torneio anterior em que fui árbitro, neste não tomei atenção ao sector feminino. Vi a final e pouco mais, de modo que, para não ferir susceptibilidades, não vou “dar prémios” ao que não vi.
E pronto, por agora é tudo. Até ao próximo torneio, a 28 de Janeiro.

27.11.05

"MEDALHA"



Eu nem imagino em que estado este rapaz deve ter o gargalo, ainda hoje. Esta é uma das fotos mais famosas de tsuki que circula na net. Via-a pela primeira vez na contra-capa do número 2 da revista Kendo-World já lá vão uns três anitos ou coisa que o valha. Só de olhar, ainda hoje, me dói.
Isto tudo a propósito do tsuki que o Sérgio me “espetou” ontem no mune-do. É que apesar de me ter acertado numa zona aparentemente bem protegida, tenho cá um “medalhão” negro no meio do peito...
Nota: Se alguém encontrar um site a pedir dinheiro para comprar uma traqueia artificial para o rapaz da foto, digam-me, tá bem?

OBRIGADO

Para muitos autores de blogs 5000 hits, como se costuma dizer, é bricolage.
Mas no dia 27 de Novembro de 2005 às 02 horas 37 minutos e 38 segundos da manhã alguém, utilizando um computador equipado com um sistema Windows ME e através do browser Firefox 1.7, visitou este modesto kendo blog e marcou o hit 5000.
A esse viajante ciberespacial os meus cumprimentos.
Espero que tenha gostado (e que volte).
A todos os outros, obrigado pelos 5000 hits. Tou muito feliz.

25.11.05

KENDO NO FEMININO

Há já algum tempo, dois ou três anos, que "tropeço" regularmente com o blog da Mingshi Wan, também conhecida como Jenny. Não deixa de ser curioso pensar que já me cruzei duas vezes com ela e não nos conhecemos. Uma em Glasgow: chegámos à conclusão que fIzemos exame para shodan no mesmo dia e outra, quando estava em Londres a gravar o meu "documentário" sobre kendo, no Wakaba Kendo Club.
Actualmente a Jenny voltou para Hong Kong, onde está a treinar seriamente para fazer parte da equipa daquela ex-colónia inglesa para os 13ºs Campeonatos do Mundo.
Designer gráfica de profissão, alimenta o seu blog regularmente, qual tamagoshi, e ainda possui uma secção de fotos muito interessante.
Um blog de kendo no feminino, interessante (tanto quanto um blog consegue ser) para homens e mulheres kendokas em http://mingshiwan.blogspot.com.

ATINGIR O KI PELO MÉTODO DO KATA (1ª PARTE)



A continuação deste artigo da autoria de Kenji Tokitsu sensei sobre ki, encontra-se no site do dito, mesmo aqui ao lado na minha, relativamente nova, secção de links. Quem conseguir encarar um texto em francês pode ir lá ver como é que acaba.

O primeiro método tem como base a formação técnica e a sua aplicação através da repetição. É a mais frequentemente aplicada.
Por exemplo, para aprender kendo, começa-se a partir do manejamento correcto do shinai; para aprender karaté, começa-se por aprender a forma precisa dos socos e pontapés. Não se trata de bater de qualquer maneira. Em combate, não se consegue obter um ippon se não se bater correctamente. Treina-se com o objectivo de fazer combates superiores com uma técnica magnífica.
Se, hoje em dia, analizarmos as técnicas de kendo tal como foram preconizadas, podemos obter um certo número de modelos técnicos a aprofundar. Esses modelos representam uma espécie de ideal técnico imprescindível de assimilar. Podemos dizer que os kendokas praticam jigeiko tendo esses modelos como critério, acerca do que é uma boa ou má maneira de combater. E o mesmo acontece com os karatekas. Se bem que no kendo esses modelos não sejam classificados como kata. (N.Tr.: suponho que o autor se esteja a referir aqui a exercícios como oji-waza, hiki-waza, etc) Eles são muito diferentes dos Nihon Kendo Kata.
Tal e qual como no karaté, podemos exercitar as técnicas directamnente utilizáveis: os encadeamentos técnicos, deslocações, etc. Podemos mesmo codificar um conjunto de gestos úteis e necessários para os tipos de combate que fazemos diariamente. Podemos, quase, formar kata com esses gestos, mas obteremos kata diferentes dos kata “tradicionais”. E podemos fazer o mesmo com o judo.
Em todo o caso, não nos exercitamos para combate de qualquer maneira. Seguimos um modelo que se aproxime de uma certa perfeição. Ao fazer mil suburi, trata-se de repetir mil vezes uma procura de um ataque perfeito.
Dessa maneira, quando se exercita repetindo uma técnica com um modelo idealizado, trata-se do método do kata, no sentido mais lato da palavra. A única razão porque não dizemos que é o método de kata é porque atribuimos a génese dos kata à tradição. Mas quando analizamos o dinâmismo inerente à génese dos kata, conclui-se que, antes de um kata “nascer”, cada um foi praticado da mesma maneira que agora praticamos as técnicas úteis, necessárias, indispensáveis, até, para formação das nossas capacidades técnicas de combate.
Não se trata apenas de um cerimonial gestual do qual sentimos necessidade de justificar o desfasamento em relação à prática do combate efectivo.
Assim, sem que o nomeemos, é o método de kata, no sentido mais amplo da palavra, que aplicamos no kendo ou no karaté.
Não basta fazer um movimento perfeito a sós, é necessário fazê-lo em situação de combate, face a um adversário. O jigeiko é um processo de assimilação dos requisitos necessários para realizar um combate mais perfeito. Não se fazem bons combates por sorte.
Quando se é capaz de fazer combates satisfatórios, é porque já se consegue sentir uma espécie de plenitude ao marcar um ippon. Nessa situação, criámos, anteriormente ao golpe, um instante de vulnerabilidade no adversário, pois fomos capazes de perturbar a sua guarda e o seu espírito. O nosso ataque apoiou-se no vazio do oponente, enquanto nos sentiamos repletos de energia, produto de uma boa postura do corpo que transporta o sabre numa trajectória perfeita. (...)

Próximo artigo: Atingir o ki pelo método do kata (2ª, e última, parte)

23.11.05

OS MÉTODOS CLÁSSICOS DE DESENVOLVIMENTO DO KI

Claro que nem é preciso dizer que o combate não é uma abstração. Ele visa a eficácia. O aprofundamento do combate com o ki permite, por um lado, aumentar essa mesma eficácia, e por outro, praticar durante mais tempo, digamos até, uma vida inteira. No kendo não é raro encontrar mestres que praticaram até mesmo à véspera da sua morte, demonstrando, até ao último dia, grandes capacidades. Nas artes marciais de mãos nuas, no karaté, por exemplo, é muito raro encontrar um mestre que pratique o combate depois dos 60 anos. No entanto, numa disciplina como o taïki-ken, onde o exercício do ki é fulcral, o falecido K. Sawai praticou o combate efectivo de mãos nuas, com todas as suas capacidades, até próximo dos 80 anos.
Penso que o trabalho apoiado no ki está presente, explícita ou implicitamente, naquelas disciplinas do budo em que os adeptos podem percorrer um longo caminho, melhorando sempre as suas capacidades. No kendo, o trabalho sobre o ki torna-se efectivo a partir de um certo nível e no taiki-ken desde o começo. Em certas escolas de jujutsu e de kenjutsu, não se insiste sobre o trabalho do ki, mas ele está presente implicitamente.

Na tradição do budo, podemos distinguir dois métodos de desenvolvimento do ki, distintos na sua aparência mas, no fundo, complementares.

Próximo artigo: Atingir o ki através do kata

ACERCA DE “UMA CHAVE PARA O BUDO”

Este é, sem dúvida nenhuma, um dos textos mais esclarecedores que li em toda a minha vida sobre o tema do budo. Sobretudo, esta 3ª e última parte.
Sou o orgulhoso dono de um exemplar de Ki and the way to the martial arts e conheço os escritos de Tokitsu sensei desde os tempos, nos fim dos anos setenta, em que escrevia para a revista francesa Karaté (hoje, Karaté-Bushido).
Por mais que tente não me surpreender, acabo sempre... hum... pois, surpreendido com a racionalidade e a facilidade com que explora e explica os temas mais obscuros, chamemos-lhes assim, das artes marciais, sem nunca cair no esoterismo fácil e no bullshit (seja o bullshit new-age ou o bullshit do costume).
Óóói, estão a ouvir o que eu estou a escrever? LEIAM OS TRÊS ÚLTIMOS ARTIGOS.
Vale a pena.

Trust me.

22.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (3ª PARTE)

Vimos como, de certa maneira, a visão do praticante se desloca progressivamente de uma preocupação técnica gestual simples para um estado de espírito. Não se deixar perturbar perante o seme e distinguir o verdadeiro do falso nos actos do outro, tudo isso contribui para a aquisição de uma perspicácia apoiada pela força de espírito. Mas seria falso dizer que há uma etapa onde apenas o espírito domina, pois sem técnica corporal não existe combate.
A estrutura do budo é dupla: é preciso estar pronto a todo o momento para desencadear a violência, mas, ao mesmo tempo, manter um estado de lucidez no qual o espírito possa captar amplamente tudo o que se passa ao seu redor. Quando num estado de tranquilidade, a lucidez permite transformar a agressividade em potencial. Um poema famoso de Miyamoto Musashi comunica essa disposição:


“Na torrente invernosa rápida,
a água transparente e calma à superfície,
reflecte a lua como um espelho.”


Mergulhar a mão na água gelada e rápida evoca o frio cortante da lâmina do sabre. A rapidez é o dinamismo do combate. Ao mesmo tempo, a superfície da água dá uma ideia de pureza e calma. Se a superfície se agita, a Lua será deformada. Este poema, frequentemente citado para descrever o estado de espírito do sabre, mostra bem a dupla componente da violência e da calma.
Num nível de combate mais primário, aquele que age com agressividade e violência tem mais chances de obter uma vitória. Mas o nível que devemos procurar no budo corresponde a uma melhor mestria da técnica e do ser. Aí, o estado de espírito reflecte-se da maneira mais refinada. Neste caso, assim que se pensa em atacar com o intuito de fazer mal ao adversário, algo sussurra no mais profundo da consciência que isso é errado. Esse sussurro, por mínimo que seja, é suficientemente importante para travar a espontaneidade do acto. Penso que é nesse sentido que se diz:

“Se o espírito é justo, o sabre é justo; se o espírito não é justo, o sabre não é justo.”

Esse ensinamento é por vezes concebido como moral, mas o seu fundamento é técnico. A arte do combate é uma arte pragmática. Diria que a moral emerge aqui de um pragmatismo levado ao limite. É a particularidade do budo. Não se trata duma associação de valores morais à prática das armas.
Se buscamos agir espontânea e justamente, é preciso libertar o espírito dos entraves da consciência; daí provém o ensinamento do “espírito vazio”.
A este nível, a procura da eficácia desenboca numa espécie de paradoxo porque, se queremos vencer o adversário (o que significa matá-lo no sentido técnico) da maneira mais segura, é preciso não desejar vencer (matar), é preciso ter desapego pela vitória, se a desejamos obter. O que se aproxima da máxima: “É preciso preparar-se para morrer, se queremos sobreviver.”
Desse modo, o acto do combate conduz-nos a uma introspecção e a uma dúvida que nos empurra para a reorganização da nossa pessoa, tendo em vista ser mais perspicaz, capaz de não se deixar perturbar, agir espontaneamente e, precisamente, desencadear as capacidades ao máximo. O processo dessa reorganização é o treino que inclui uma tensão no sentido do auto-aperfeiçoamento. É aí que nasce a prática do budo.

Ao observar assim a evolução da consciência do praticante, podemos perceber que é a partir do momento em que toma consciência da importância do (de uma coisa) que é normalmente invisível, que a sua formação subjectiva começa. Essa coisa, que é a chave do budo, é o ki. Dito de outra forma, enquanto uma pessoa não entender essa sensação de ki na prática das artes marciais e não conseguir construir a sua prática pondo em causa o seu ser, ela não conseguirá seguir o caminho da auto-formação, (como que) por falta de luz num trilho escuro.

É também neste sentido que eu penso que o ki é a chave do budo.

20.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (2ª PARTE)

Ao assistir a um combate de kendo, os praticantes de outras artes marciais deveriam concentrar a sua atenção na maneira como os combatentes cruzam os seus shinais. Veriam que, quando as pontas se cruzam, fazem-no em movimentos subtis, tanto calma, como ligeira e rapidamente. É um combate de pontas, um combate implícito onde os praticantes se batem para ocupar a linha central do adversário, a sua linha vital; para impor a iniciativa de combate, para criar uma ocasião onde o ataque possa acontecer sem erro. O combate mais importante desenrola-se assim, durante essa troca, aparentemente pouco dinâmica.
Eis o significado do célebre ensinamento: “Não ganhes depois de atacar, ataca depois de ganhar”.
“Depois de ganhar”, é precisamente depois de ter ganho o combate de pontas e de seme.
No momento em que os dois adversários se enfrentam, começa a interferência do ki. Os gestos do seme são um meio de projectar o ki sobre o adversário. Se o acto do seme influi sobra a atitude do oponente é porque esse acto toca e faz mexer a percepção directora do adversário. Diria que é uma interferência de ki. Eis porque podemos dizer que, mesmo numa fase onde se efectua o seme sem ter consciência do ki, o essencial do seme consiste de ki.
Penso que esse nível de combate é desconhecido para muitas das disciplinas de combate (judo, karaté, boxe...) nas quais a consciência dos praticantes é limitada aos elementos mais directamente perceptíveis: a velocidade, a força ou a agressividade. É uma percepção muito difícil de estabilizar num combate de percursão como, por exemplo,no karaté. (...)
É portanto no kendo que podemos constatar, de maneira mais concreta, o papel daquilo a que chamamos ki. Nesse sentido, o kendo é uma disciplina privilegiada.

No entanto, não se trata de fazer um elogio incondicional do kendo. Pois antigamente, o kendo incorporava técnicas corporais bem mais ricas e com um âmbito muito mais alargado. Relacionando-o com a sua tradição, o modelo de kendo actual parece-me um pouco incompleto, sobretudo no que diz respeito à formação geral do corpo e às suas regras de combate. Parece-me que são pontos que os praticantes contemporâneos não podem senão ser sensíveis, se desejarem aprofundar o valor do kendo “enquanto budo”.
Em todo o caso, podemos dizer que é no momento em que o praticante começa a sentir vivamente o papel do ki, que a sua prática tende a constituir-se como uma via (do) e que aparece a verdadeira consciência do budo.
Porquê?
Sentir vivamente o papel do ki implica que um adepto pratica o combate buscando “atacar depois de ganhar”. Não se trata de procurar a vitória tentando golpear a todo o custo, mas de acertar um golpe certo, sem erros. Trata-se assim de construir um combate onde a justeza da sensação seja confirmada através de um ataque seguro. Quando atinge esse nível, o adepto confere uma grande importância às fundações do combate, que o mesmo é dizer, ao combate de ki, aquele que se desenrola antes da troca efectiva de golpes.
Se, pelo seme ou pela ofensiva de ki do adversário, nos sentimos atacados e esboçamos um movimento de defesa no vazio, isso significa agir explicitamente contra algo implícito. Nesse caso cometemos um erro no descernimento da realidade. Se nos damos conta instantaneamente, sentimos em nós mesmos uma dissociação, pois o nosso espírito não foi capaz de reter o nosso corpo no seu gesto erróneo. O esboçar do gesto inútil significa que, apesar de tudo, o adversário conseguiu atingir algo. Perdemos assim, nesse instante preciso, a possibilidade de ganhar a iniciativa e fomos derrotados antes de receber o golpe. (N.Tr.: As vezes que isto me aconteceu, ao fazer ji-geiko com Osaka sensei, davam para escrever um blog inteiro. Mas seria tããão repetitivo.)
Quando a percepção está aberta dessa maneira à interferência do ki, perder assim é tão importante como receber um golpe de verdade. E o problema passa a ser: como descernir o verdadeiro do falso, como não ser afectado pela ofensiva do adversário, seja pelo gesto ou pelo ki?
Quando se busca a ocasião para atacar o adversário, usa-se o seme para ganhar o combate das pontas, afim que o adversário desvie a extremidade do sabre da sua linha central, a sua linha vital. O adversário que cede semelhante abertura, apesar da sua vontade, torna-se vulnerável. Nesse instante, se lhe desferirmos o golpe, será uma vitória incontestável. Não sentiremos essa satisfação, se o atingirmos por sorte e ele permanecer imperturbável, apesar de atingido. Diremos então: acertei, mas o golpe não conseguiu perturbar o seu espírito.
Agora, o problema passa a ser: como atingir o espírito do outro, utilizando o ki?

Próximo capítulo: Uma chave para o budo (3ª e última parte)

19.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (1ª parte)

Texto da autoria de Kenji Tokitsu sensei (ver site ao lado).

A reflexão sobre a via (do) aparece espontaneamente, à medida que o tempo progride, quando a tensão no sentido da formação do indivíduo se associa à prática da arte marcial. Dito doutro modo, enquanto essa tensão não surge, a prática não contém essa reflexão sobre a via e, consequentemente, não constitui budo. No sentido mais rigoroso do termo, o budo não designa disciplinas particulares, mas sim a qualidade e o conteúdo prático de uma disciplina. Logo, não é porque se pratica seriamente kendo, karaté, jo-do, kyudo...que se pratica budo. É apenas quando a prática contém espontaneamente essa tensão no sentido do auto-formação da pessoa na sua totalidade, a tensão do do, que a prática de transforma em budo.
O budo não é, assim, um género entre as disciplinas de combate, mas a maneira como nos envolvemos numa disciplina da combate em busca da eficácia.
A tensão no sentido da formação do Eu, da maneira como expliquei mais acima, não surge de uma forma abstracta, mas antes apoiada numa sensação corporal concreta. Trata-se de uma sensação corporal que todos os seres humanos podem conceber, qualquer que seja a sua origem cultural. Dito doutra forma, essa sensação é a chave que permite praticar o budo de uma forma completa, ultrapassando os obstáculos culturais.
Que sensação corporal é essa? Em japonês, ela é designada através da noção de “ki”.
Penso que a sensação corporal de ki está frequentemente presente na experiência humana. Mas a forma de interpretação dessa sensação varia consoante a cultura. Por exemplo, o carácter lógico está muito mais desenvolvido nas línguas ocidentais do que na língua japonesa. Mas não há nas línguas ocidentais, e isso é uma dificuldade importante, uma palavra equivalente a ki. Esse termo cobre, em japonês, toda uma série de sensações e de impressões misteriosas, vagas, intangíveis, que tocam qualquer coisa de fundamental no nosso ser e onde que ressaltam uma perspicácia provavelmente arcaica e recôndita. Esse conjunto de impressões dificilmente definíveis por uma palavra está presente na experiência quotidiana, na literatura e nas artes japonesas. Quando se lhe quer dar um nome, chama-se-lhe ki.
A exclusão desse tipo de sensações e de impressões da superfície dos vocábulos, parece-me paralelo ao desenvolvimento do carácter lógico das línguas ocidentais. O pensamento racional desenvolveu-se provavelmente a refutar essa sensibilidade.
É por isso que na prática (das artes marciais), a sensação de ki deve ser captada como ki, sem passar pelo sistema de tradução de palavras equivalentes. Parece-me que para possuir a chave do budo e ultrapassar os obstáculos culturais, é necessário cultivar uma perspicácia em relação à sensação de ki e de se deixar guiar em extensão e em profundidade por essa sensação, através das técnicas corporais de combate.
No kendo, o praticante aprende desde o início o que é o ki de uma maneira simples, através da expressão “ki-ken-tai”. Ao longo dos anos aprende a importância de “seme” no combate. Não se pode descrever de uma maneira simples o que é o seme. Mas é evidente que o nível do praticante se reflecte directamente na qualidade do seu seme.
Geralmente, o seme implica atitudes ou gestos que comunicam a combatividade ao adversário. Mas o seme é bem mais do que as fintas que se utilizam no combate de karaté (N.Tr.: ou de kendo). Quando se faz fintas, mas esses gestos não conseguem criar uma reacção no adversário, então elas não são seme. Pelo contrário, trata-se de seme, quando um gesto, por mínimo que seja, consegue perturbar o espírito do adversário e, num nível mais elevado, quando se consegue “atingir o espirito” do oponente sem efectuar qualquer gesto explícito. Quando se consegue perturbar o espírito do adversário utilizando apenas o ki, sem qualquer gesto aparente, a isso chama-se “kiseme”
É por isso que não se pode definir o seme através da mera descrição de movimentos. O gesto do seme é aquele que transmite qualquer coisa de essencial. Se essa “coisa essencial” não é comunicada, então nenhum dos gestos constituiu seme. Dito doutro modo, se essa coisa é comunicada (mesmo) sem gesto aparente essa trasmissão constitui seme.

Essa coisa essencial, (claro) é o ki.

Próximo capítulo : Uma chave para o budo (2ª parte)

18.11.05

ACERCA DE TSUKI, MUKAE-ZUKI E KÔBÔ-ICHI


Facto nº 1Tsuki é uma técnica válida, tão válida como men ou kote;
Facto nº 2 – Tsuki é muito mais difícil de executar do que men ou kote;
Facto nº 3Mukae-zuki não é uma técnica válida.
Facto nº 4Mukae-zuki é uma maneira clara de declarar incapacidade de fazer frente ao seme do adversário.
Facto nº 5 (e último) – Mukae-zuki não é o mesmo que tsuki.

Costumo dizer logo nos primeiros treinos, às pessoas que começam a fazer kendo, que “os segredos” do kendo são dois: a) - a mão esquerda é que faz força e b) – seja qual for o ataque que se faça, essa mesma mão acaba sempre ao centro.
Não é exagero dizer que um combate de kendo começa com uma batalha pelo domínio da linha central e acaba quando um dos participantes cede esse domínio ao adversário. É tão simples quanto isso.
Ora, na busca de obtenção desse domínio, muitas técnicas foram criadas.: harai, kaeshi, suriage, enfim, técnicas “positivas” de controle do centro do combate. Uma das que não entra nessa denominação consiste em, durante um ataque do adversário, aproveitar o facto de o kensen se encontrar ao centro e intencionalmente esticar os braços atingindo o tsuki-dare do oponente.
É corrente pensar (erradamente) que, mesmo que o shinai do adversário se espraie generosamente sobre a nossa cabeça, ele não levou a melhor.
Esse gesto, normalmente designado mukae-zuki é, na maior parte das vezes, uma confissão acerca da incapacidade de defender a linha central.
Kôbô-ichi é um conceito que define ataque e defesa como fazendo parte de um todo inseparável. Kôbô-ichi é estar sempre mental e fisicamente preparado para um eventual contra-ataque do adversário e/ou para contra-atacar durante o ataque dele.
Mukae-zuki não faz parte desse quadro de acção. Ataque e defesa estão claramente separados.
Mukae-zuki não se enquadra no kendo ideal, ao contrário de tsuki-waza que exige, tal como men ou kote ou dô, um controle central antes da sua execução, aplicação de pressão sobre o kamae adversário e, finalmente, face a uma abertura, um ataque concreto, positivo e inegável.
Parece extremamente simples, mas tsuki é uma técnica que requer do kendoka mais competência, chamemos-lhe assim, que qualquer outra. As ancas e as pernas têm de estar numa posição sólida durante o impacto mas, ao mesmo tempo, prontas para voltar para trás para kamae (zanshin). Tsuki não se faz “a passar”. É preciso ir e voltar.
Afinal de contas, será por acaso que sanbonme é sempre a kata mais difícil de executar?

O ÚLTIMO DA TEMPORADA (SALVO SEJA)


É já no próximo dia 26 de Novembro que os 24 kendokas masculinos classificados no ranking oficial da APK, participarão no Campeonato Nacional de Kendo 2005, que terá lugar na cidade de Coimbra.
O shinai-check realizar-se-á entre as 12:30h e as 13:30h no Pavilhão Multidesportos de Coimbra, no mesmo local onde, às 14h, se dará início ao último evento da temporada. Último, claro, se não contarmos com o "play-off" de apuramento para os dois últimos lugares na selecção nacional, que terá lugar em data a anunciar.
No sector feminino, as coisas são mais pacíficas e as kendokas nacionais podem inscrever-se directamente, sem recurso a ranking, devido ao seu menor número.
Esperemos que, tanto os rapazes como as meninas, sejam um pouquinho melhores do que no anterior. É sempre o melhor que se pode esperar.

17.11.05

PRÓS MEUS AMIGOS INTERESSADOS EM JODAN KAMAE.

Ora aqui está uma foto muito interessante. Reparem na distância que separa os dois kendokas. Vejam como é muito semelhante à que existiria se o kendoka da esquerda estivesse em chudan kamae. Tudo o que esse kendoka faz é aumentar muito ligeiramente a distãncia ao recuar a perna esquerda. De resto, continua a ser, na mesma, issoku-itto-no-maai? Ou será to-ma?
Então? Pedro, Rui, Joni? Nada?

O PROBLEMA DO BUDO PARA OS ADEPTOS ESTRANGEIROS

Vamos agora ao encontro de alguns problemas que os adeptos estrangeiros do budo, em particular os ocidentais, se arriscam a encontrar.
A via (do) para os japoneses diz respeito a toda a duração da vida. A noção de budo comporta uma tensão no sentido do auto-melhoramento, ou seja, da pessoa na sua totalidade, através da prática marcial. Essa expressão é compreensível para os ocidentais, mas não esses lhe atribuem o mesmo sentido que os japoneses.
A maneira de elevar a qualidade humana pela prática do budo tem origem, já o vimos antes, nas concepções budista e shintoísta. Os homens podem atingir o estado de Buda, um estado divino, e podem confundir-se com um deus de um santuário. Pode-se citar, como exemplo, o santuário Hayashizaki-Jinja onde o fundador da escola de Iaï, Hayashizaki Jinsuke-Shigenobu, é venerado como um deus do Iaï. Existe um grande número de santuários onde uma pessoa é venerada como um deus. Esse pensamento pressupõe que um homem pode, pelos seus esforços, atingir um estado de perfeição na sua existência.
Cada ser humano tem a possibilidade, ao elevar o seu valor humano, de mudar a qualidade do seu ser, de atingir um valor que se confunde com a forma do absoluto. A diferença é evidente com a cultura cristã onde a distância entre o homem e Deus é intransponível.


O discurso filosófico e ético das artes marciais ou do budo são, assim, baseadas fundamentalmente sobre a concepção budista e shintoísta do mundo e do universo, no qual não há absoluto, pois que nada existe sem ser relativo ao resto. Esse universo não é baseado no conceito de Deus-Absoluto. Conheço alguns mestres japoneses de artes marciais que são cristãos. Mesmo se a sua fé é cristã, isso não os impede de ser sensíveis à energia universal do sentimento budista e shintoísta.
Apoiada nessa concepção do mundo e nessa forma de sensibilidade, a ideia de auto-formação é essencial no budo. Desenvolvê-la na óptica de outras culturas seria, de uma certa maneira, prolongar a generosidade da lógica do budismo; dar à luz uma obra apagando-se a si mesmo. Uma obra onde cada ser humano é suposto ser capaz de aspirar a seguir na direcção da perfeição, caminhando pela via das artes marciais.

Alguns pesquisadores ocidentais definem o budo buscando os traços comuns das disciplinas das artes marciais de origens diversas. Mas a particularidade fundamental do budo consiste mais na concepção de uma formação do homem do que nas particularidades gestuais das disciplinas.
Dessa maneira a prática do budo conduz os adeptos ocidentais, como os mestres japoneses, a pôr em causa a sua maneira de ser. Não se trata, para os ocidentais, de brincar ao japonismo*. Certos europeus parecem viver de uma maneira mais japonesa que os japoneses. Penso que não é preciso perder ou tornar ambígua a sua identidade mas, pelo contrário, é preciso reforçá-la vivendo intensamente, aqui e agora, a cada instante.
Aceder à realização do budo concebido de maneira planetária levanta, deste ponto de vista, uma problemática de diferenciação.
Penso que está aí a dificuldade fundamental para os adeptos do budo.

* No original: jouer le japonisme.

Próximo capítulo:
Uma chave para o budo.

16.11.05

A TRANSMISSÃO DO BUDO PELOS JAPONESES

Comecemos pelas dificuldades e problemas que os mestres japoneses encontram quando procuram transmitir o budo a estrangeiros que desejam construir a sua própria prática de budo.
Quais são os problemas explícitos e implícitos que se lhes deparam?
Para os mestres japoneses, uma das dificuldades mais importantes é a comunicação das técnicas corporais do budo, ligadas aos aspectos espirituais. É que, para serem verdadeiramente compreendidos, eles serão obrigados a relativizar um pouco a sua concepção de vida, o que os conduz de certa maneira, a pôr em causa a sua própria concepção do mundo. O que não é uma coisa fácil.


Para evoluir na prática do budo, cada um deles sabe que é preciso concentração, vontade, convicção e mesmo um espírito inquebrável, afim de poder perseverar durante anos e anos de treino. Na maior parte dos casos, é da sensação de busca de perfeição que os mestres extraem a energia necessária para alimentar a prática do budo. Ora essa sensação, mesmo quando não se manifesta de forma consciente, tem origem numa tentativa que visa aproximar-se do estado de perfeição representada pelo sincretismo da imagem do Buda e da representada pelos deuses shintoístas, valores sempre presentes em profundidade na sociedade japonesa. Ela comporta uma intuição que funde o mundo humano e o universo cósmico. Por isso, os japoneses têm tendência para a considerar como um valor universal e a pressupor que ela está presente naqueles a quem se dirigem, mesmo que eles pertençam a uma cultura diferente. Eis o problema.
Essa tendência para um universalismo pode exprimir-se pela generosidade quando numa posição confortável, mas é preciso notar que ela foi uma das justificações da ideologia de domínio do mundo durante a II Guerra Mundial. Não é por acaso que, durante as guerras, o budo foi facilmente confundido com um nacionalismo que excluia qualquer valor da vida, que não a do Japão Imperial.

A constãncia e a tensão do esforço exigidas pelo budo tendem a reforçar a visão da universalidade do valor da vida que o do traz; até porque ter várias visões pode conduzir ao “mayoï” (perda da direcção a seguir). O budo cria força para se seguir directamente para o objectivo, mesmo que, por vezes, em detrimento do pensamento crítico.
Entretanto, a possibilidade de praticar o budo tendo como objectivo a formação do homem, com uma difusão das suas disciplinas à escala planetária, é um tema em discussão actualmente no Japão. No meu ponto de vista, isso não faz sentido senão encontrarmos uma outra maneira de captar a essência do budo, descarregando-o da cosmogonia japonesa. É essa dimensão do budo que eu persisto em tentar definir. Apenas ela permitirá comunicar na cultura ocidental o que constitui o essencial do budo. Indo mais longe, penso que não há um único budo, mas múltiplas possibilidades na prática e na apreciação do budo.
Nesta situação, ouso dizer que a maior parte dos mestres japoneses, sobretudo os mais idosos, estão pouco conscientes da pluralidade de visões da via com que o budo é confrontado nos dias de hoje. Isso deve-se principalmente à sua educação, mas também à barreira da língua e da falta de experiência em comunicar com estrangeiros.

É preciso reconhecer que poucos mestres estão dispostos a compreender outros sistemas de pensamento, que não o japonês, sobretudo no que respeita à prática do budo. Para a maior parte dos mestres mais velhos, o budo é único e, por consequência, a comunicação do budo não pode ser senão unilateral: do mestre para os alunos e de japoneses para estrangeiros. Para eles é impensável que o conceito de budo possa ser reexaminado e modificado ou mais definido, devido ao contacto cultural com estrangeiros. No entanto, hoje em dia, parece-me que é tempo precisamente de reexaminar e definir esse conceito, pois a prática do budo é hoje uma prática planetária e essa situação precisa de ser resolvida.
Os mestres japoneses são frequentemente muito generosos em relação aos estrangeiros, na medida em que o seu ponto de vista não é posto em causa. Penso que isso provém principalmente da ilusão de compreensão que advém da insuficiência de comunicação linguística. Quando essa se dissipa e o mal-entendido se revela, eles podem parecer egocêntricos, incompreensíveis e herméticos aos olhos dos seus alunos ocidentais. Penso que alguns adeptos já passaram por esse tipo de experiência.

Ouso indicar agora esses aspectos positivos e negativos, pois que eles parecem-me reflectir os problemas fundamentais que devemos ultrapassar para o bem do budo do futuro.
Se os mestres japoneses não forem capazes de guiar ou de comunicar correctamente o budo para o exterior, então, fora do Japão, ele arrisca-se a transformar-se em algo irreconhecível perdendo a sua qualidade específica.
Sobretudo no kendo, a responsabilidade dos mestres japoneses é muito maior, visto que, no Japão os mestres de alto nível são incomparavelmente mais numerosos do que noutros países. A sua responsabilidade é múltipla e pesada, pois que, na minha opinião, é a única disciplina do budo actual onde, graças à prática do combate, está preservada a ideia de budo no seu sentido mais amplo.
As outras disciplinas do budo, enquanto umas se confundem com desportos de combate, outras limitam-se à prática quase exclusiva de kata, dando uma ideia, se bem que destorcida, de meras práticas de folclore. É preciso reconhecer também que hoje o valor do kendo está ameaçado, a tal ponto, que torna frágeis os seus próprios fundamentos.
Nessa situação, a responsabilidade dos mestres e dos adeptos japoneses consiste, em primeiro lugar, em preservar e desenvolver o seu património cultural, o kendo e o budo; em segundo lugar, a comunicá-lo e transmiti-lo aos outros. Para isso, é preciso ter uma visão alargada do mundo do budo, afim de analisar e compreender a situação actual do Japão e dos outros países, e assim elaborar uma teoria e um método de comunicação que possa responder-lhe plenamente.

Por esses motivos, penso que a evolução, e o progresso, dos mestres e pesquisadores japoneses se impõe e que ela é decisiva para o futuro do budo.

O link para a página de Tokitsu sensei, o autor deste texto, está lá em cima à direita.

15.11.05

A NOÇÃO DE “DO”

(Vimos que) é portanto inadequada a definição do budo em função dos seus traços de austeridade e severidade, ou pela espiritualidade do ascetismo. Budo significa, literalmente, via marcial. É necessário reflectir sobre a prática técnica das artes marciais (bu) em relação à noção de via (do).
Hoje, no Japão, a modernidade é fortemente valorizada e algumas pessoas mais jovens apresentam uma reacção quase alérgica quando se lhes fala de do. Eu penso que a via não é nem arcaísmo nem misticismo. O do é constituido pelo tempo de vida, desde o nascimento até à morte. A via é feita de subidas e descidas. Todos percorrem esse caminho mas ele não se impõe à consciência e é fácil de se dispersar com o passar do tempo. A partir do momento que se fala de via, há uma direcção e um objectivo.
Quando, durante esse lapso de tempo que é uma vida, se associa à prática das artes marciais uma tensão no sentido do aperfeiçoamento pessoal, ou seja, do indivíduo na sua totalidade, é então que a ideia de budo nasce. A ideia de melhoramento pessoal está presente em todas as culturas. No entanto, o que isso significa para os japoneses parece-me ser muito diferente do que significa para os europeus. Mas, mascarada pela ideia de progresso, as diferenças não surgem à vista numa primeira abordagem. Se um ocidental pretende praticar budo a tempo inteiro, um dos problemas mais importantes parece-me ser a capacidade de pôr em prática a concepção de via (do).
É fácil compreender que a questão do budo não se põe nos mesmos termos para os japoneses e para os ocidentais. A compreensão mútua deve ultrapassar primeiro um certo número de problemas que vou tentar identificar.

Próximo artigo: A transmissão do budo pelos japoneses

14.11.05

CONTRIBUIÇÃO PARA A POLÉMICA A PROPÓSITO DE SEIZA.

Ao fazer seiza, qual a perna que desce primeiro? E qual a perna que se levanta primeiro? Onde é o Kamiza? Etc etc.
Tem havido alguma conversa ultimamente sobre o assunto no dojo. Então, movido pela curiosidade, fiz umas pequenas pesquisas e os resultados a que cheguei resumem-se no diagrama acima.
Segundo as regras da Ogasawara-ryu Reiho (a escola de boas maneiras que rege a etiqueta do kendo japonês) há sete posições possíveis em que nos podemos encontrar sentados num dojo, sem desrespeitar o Shinza (onde as divindades se sentam).
No diagrama (uma representação ideal de um dojo), as setas indicam o lado para onde os praticantes estão virados. De notar que o ângulo “mais extremo” admitido (posições f e g) é de 90° em relação ao Shinza.
Assim, podemos chegar à conclusão que, regra geral, os homens (pormenor importante) se sentam com a perna esquerda primeiro, em quase todas as situações, excepto quando se encontram virados para norte e para lá da linha central do dojo, do lado Leste (posição c) e quando se encontram virados a 45°, do lado Oeste do eixo central do dojo, enfrentando a esquina do Kamiza (canto alto) a Leste (posição d).
A partir do instante em que sabemos que as mulheres eram aconselhadas a agir de forma contrária aos homens, a pergunta lógica é: as mulheres sentam-se e levantam-se ao contrário disto tudo? Muito sinceramente? Hoje em dia? Em 2005? Duvido.
É mais certo que as raparigas japonesas saibam qual é perna que a Victória Beckham enfia primeiro quando veste as cuequinh... ah, esqueçam.

Vocês preocupam-se em saber cada coisa.

11.11.05

O QUE É O BUDO?

Falei de budo, mas o que é o budo? Contrariamente à ideia corrente, o budo não é a repetição directa da prática guerreira das artes marciais. É sim um conceito moderno que visa uma formação global do homem, intelectual e física, através das disciplinas tradicionais de combate; sendo “budo” o termo geral que abarca o conjunto dessas disciplinas.
No Japão, quando se discute o espírito da prática do kendo, do judo ou do karaté, utiliza-se frequentemente a palavra “enquanto”. Por exemplo, o kendo “enquanto” desporto ou o kendo “enquanto” budo.
O budo evoca imagens de seriedade, severidade, ritual, respeito pelos antepassados e pelo mestre, meditação silenciosa... nessas imagens, o budo transmite a impressão de uma prática conservadora e de uma atitude austera. O dojo evoca a imagem serena de um espaço sombrio e de pavimento liso que se opõe à do desporto, sob as luzes fortes de um ginásio ou do ar livre. Com efeito, quando se fala em desporto, a imagem é mais livre e, de certa forma, mais ensolarada.
No Japão, quando se fala de budo a propósito do karaté, trata-se tanto de uma prática dura, na qual não se evita o combate ao KO, como de uma prática austera que se afasta completamente da competição. Alguns associam-no a um treino ascético na montanha, sendo a confrontação à violência a caracteristica.
Noutras disciplinas, como no tiro com arco, insiste-se no aspecto espiritual e a harmonia na prática cerimonial é tal que a ideia de combate está excluída.
Existe portanto, no Japão, uma tendência para definir o budo pelo seu aspecto de austeridade e de duração. Mas é uma definição mais emocional que teórica e que não nos leva muito longe. No diz respeito à severidade, dureza e riscos envolvidos na prática, eles existem também no domínio desportivo, em disciplinas onde o risco é muito maior e levado ao extremo, como por exemplo, no alpinismo e nas corridas oceânicas de barcos à vela.
Então o que é o budo, afinal?

Próximo capítulo: A noção de “do”.

Antes que me esqueça, convém mencionar que todos estes artigos se encontram, na versão original francesa, no site de Kenji Tokitsu sensei, logo ali à direita e em cima, na zona dos links.


O BUDO PARA LÁ DAS BARREIRAS CULTURAIS

Em França (nota trad.: e no resto do mundo), um número considerável de pessoas interessa-se pelas artes marciais, nomeadamente pelo budo japonês. Mesmo assim, o budo não tem conhecido uma difusão suficiente, visto estar situado à margem do desporto onde o factor dominante é a competição.
Curiosamente, nem na pesquisa, nem no ensino universitários, nem mesmo no quadro da Société des Etudes Japonaises (Sociedade de Estudos Japoneses), o budo se constitui como sujeito de estudos mais sérios. No entanto, para quem procura aprofundar o conhecimento da cultura tradicional japonesa, parece-me fora de questão descartar o budo e a tradição guerreira. Com efeito, os guerreiros marcaram desde muito cedo a história do Japão e governaram a sociedade japonesa durante sete séculos, até á Restauração Meiji, há pouco mais de um século. A cultura dos guerreiros teve por isso um papel sociocultural importante que se prolongou mesmo depois de terminado o seu domínio político. Se a cultura dos guerreiros está presente hoje de uma forma manifesta no budo, ela está também, e ainda, presente de uma maneira mais alargada e profunda no comportamento dos japoneses.
Não direi, como certas pessoas, que o crescimento económico japonês do pós-guerra se deve à aplicação do comportamento guerreiro no campo económico pois a realidade parece-me ser bem mais complexa. No entanto, não me parece errado dizer que a tradição guerreira subsiste impregnada nos modelos de comportamento dos japoneses.
O período feudal deixou-nos um grande número de obras literárias e artísiticas e manifesta-se em bastantes obras culturais modernas. Nessas condições, como poderíamos abordar a cultura tradicional japonesa se nos abstraisse-mos dos elementos guerreiros?
O teatro No, a cerimónia do chá, o haïku, o bunraku, o kabuki... foram desenvolvidos numa sociedade dominada pelo sabre. Que o mesmo é dizer, com uma concepção de vida e de morte diferente da existente hoje em dia. A sensibilidade das obras culturais foi modelada pelos que viviam no tempo em que a espada tinha um papel efectivo.
Em França, os estudos aprofundados sobre a cultura japonesa parecem limitar-se aos domínios literário e artístico, abstraindo-se dos conceitos de corpo e de morte que, no entanto, eram fundamentais para todos durante a sociedade tradicional.
O facto de o budo ser excluído da reflexão intelectual é devido provavelmente à tendência cultural francesa, onde o modelo intelectual tende a excluir os problemas colocados pelo corpo. Não retomarei aqui essa questão. Simplesmente, essa situação parece-me lamentável e desejaria que o budo obtivesse um lugar honroso e justo nos estudos franceses sobre a cultura japonesa. Para isso é indispensável que os praticantes de budo ajam para fazer do budo uma prática cultural de corpo inteiro.

Próximo capítulo: O que é o budo?

10.11.05

BUDO. DO QUE FALAMOS?

Do que falamos, quando falamos de budo? Para além dos clichés do costume, do misticismo associado à palavra, das imagens de dojos de chão brilhante docemente iluminado pela luz da manhã, da dureza épica da prática diária e da relação quase imediata com práticas que roçam o sobre-humano? Mas, mais importante do que isso, poderemos nós, meros gaidjin, identificar-nos com o budo? Para ajudar a esclarecer um pouco esses tópicos, Kenji Tokitsu sensei escreveu em 1998 um fantástico, e longo, ensaio acerca do tema. Ensaio que passarei a traduzir e publicar neste blog nos próximos tempos, consoante a minha disponibilidade assim permita.
O primeiro capítulo chama-se O budo para lá das barreiras culturais e deverá surgir neste espaço em breve.

8.11.05

CORRECÇÃO

No post intitulado "VENCEDORES EM JODAN" escrevi que Kawazoe sensei era o único, dos três competidores que já venceram o campeonato japonês usando Jodan Kamae, que não era da polícia. Erro meu. Só Chiba sensei era polícia. Toda e Kawazoe não o eram.

ESTÁGIO DE ÉVORA


Decorreu no fim-de-semana de 5 e 6 de Novembro o 1º Estágio de Kendo de Évora.
Os treinos tiveram lugar no Ginásio da Escola Secundária André de Gouveia e contaram com a presença do Director Técnico da Associação Portuguesa de Kendo e Seleccionador Nacional, Sensei Masakiyo Osaka e do Sempai Luis Nunes, Director Técnico da Associação de Kendo do Alentejo.

7.11.05

HARAI (URA) + KOTE

Já está disponível no site da revista kendo-world (www.kendo-world.com), na página de downloads, o combate final do 53º campeonato do Japão. E, ao contrário do que li num post do forum desse mesmo site, a vitória de Harada não é por debana kote, mas sim harai (ura) kote. Vão até lá e digam-se tenho ou não razão.
Existe também uma reprodução contendo apenas a parte final do combate, mas num ângulo melhor, em http://www.kendo.or.jp/english-page/phot-jif/53rd-All-Japan-Kendo-Champ.wmv.
É mesmo harai kote ou não é?

4.11.05

VENCEDORES EM JODAN


Então? Ninguém se habilita a uma respostazinha? É o que eu sempre digo: passam a vida a ler os Hagakures e os Bushidos e essas merdas assim e quando acabam de ler não sabem nada sobre kendo. Cultura inútil, meus amigos. Cultura inútil. Enfim...

Até hoje, 7 campeonatos do Japão foram ganhos por kendokas em Jodan Kamae. A saber:
Chiba ganhou 3 vezes: 1967, 1970 e 1973. Aquando da sua primeira vitória tinha 22 anos e era 5º dan.
Hoje em dia, Chiba sensei é 8º dan hanshi e lançou ontem (3 de Novembro) um conjunto de três DVD’s sobre kendo, sendo o terceiro volume dedicado, adivinhem a quê, Jodan Kamae, pois claro.

Toda ganhou 2 vezes: 1963 e 1965. Aquando da sua primeira vitória tinha 23 anos e era 5º dan.
Hoje, Toda sensei é 8º dan hanshi e especialista em Nito Ryu.

Kawazoe ganhou 2 vezes: 1972 e 1976. Aquando da sua primeira vitória tinha 21 anos ( o mais jovem de sempre) e era 4º dan.
Dos três vencedores, Kawazoe sensei era o único que não era polícia. Kawazoe faleceu com 27 ou 28 anos num desastre ferroviário enquanto viajava pela China.

3.11.05

JODAN KAMAE


Por falar em Jodan Kamae, quem me sabe dizer se já alguém venceu e, se sim, quantos foram os kendokas que conseguiram triunfar no campeonato japonês lutando em Jodan?
Deixem as vossas respostas/opiniões nas caixas de comentário e em breve colocarei um post para acabar com as (possíveis) dúvidas. (Fotografia do 53º Campeonato do Japão da autoria de kendoman)


MAIS 53ºS ALL JAPAN KENDO CHAMPIONSHIPS

Então, vamos lá. O relatório mais completo a que tive acesso neste momento, acerca dos 53ºs All Japan kendo Championships, reza assim:

1º lugar - Sato (ou Satoru, já vi escrito das duas maneiras) Harada. 32 anos, rokudan, polícia de Tóquio. Nona participação. Já se tinha classificado duas vezes em 2º lugar e três em 3º.
O ippon da vitória foi obtido com debana-kote durante o encho.

2º lugar – Ryoichi Uchimura. 25 anos yondan, também polícia de Tóquio (na verdade, ele é kohai de Harada). Primeira participação.

3ºs lugares – Masaomi Hojo de Kanagawa (rokudan) e Osamu Uezono de Kagoshima (rokudan).

De resto, apenas alguns pormenores interessantes:

o participante menos graduado é sandan (Kenji Harada, irmão do vencedor);
o participante mais graduado é nanadan e chama-se Nabeyama Hamada;
o participante mais velho foi Yoshihisa Okaichi de Iwate, com 38 anos de idade;
54 dos 64 participantes são polícias;
4 (quatro) competidores que se apresentaram em Jodan Kamae, chegaram aos 16 melhores;
foram eles: K.Uchida de Shizuoka, K. Okuma de Hiroshima, K. Seike de Osaka (que derrotou o ex-campeão K. Ando) e ainda M. Matsumoto, também de Osaka, que se classificou em 4º lugar;
M. Matsumoto participou nos campeonatos pela primeira vez tal como Uchida;
para K. Seike e K. Okuma foi a segunda participação.

É caso para dizer que parece que Jodan Kamae está “em alta” outra vez, hehehe.

Perceberam? Hehehe. Jodan... em alta. Hehehe. Foi boa esta, não foi?

Nota: Estas informações foram pilhadas aqui e ali, mas sobretudo do site http://www.isenokami.com pertença de Akihito Abe.

PENSAMENTOS SOBRE O ESTÁGIO DE ÉVORA

Ocorreu-me agora mesmo uma ideia completamente peregrina.
O estágio de Évora está à porta e, a dois dias de distância, pus-me aqui a pensar naquelas pessoas que, no forum da página da APK, se "queixavam" da falta de experiência, do pouco tempo que treinam e de como é que se pode ganhar experiência assim e tudo o mais.
E, de repente, percebi que as minhas dúvidas acerca da afluência a este estágio eram completamente escusadas. É claro que o estágio vai ser o maior evento "kendoísta" do ano. É óbvio. É mais do que evidente que todas essas pessoas irão aproveitar ao máximo esta oportunidade. E poderia lá ser de outra maneira?
Tenho a certeza que todos lá estarão, desejosos de passar um bom fim-de-semana cheio de experiências novas e enriquecedoras para o seu kendo.
Eu já disse, eu cá vou.

SATO HARADA (FINALMENTE)

Sato Harada
(Foto emprestada do site da ZNKR http://www.kendo.or.jp)

O 53º All Japan Kendo Championships já está decidido.
Sato Harada (rokudan, Tóquio), na sua 9ª participação foi (finalmente) coroado campeão do Japão. Depois de ter perdido na final dos 52ºs contra Tsuyoshi Suzuki, este ano o senhor Harada teve o seu momento de glória.

1.11.05

IT TAKES TWO TO KEIKO (ou respeitinho é muito bonito)

A frase original diz: “it takes two to tango”, que é como quem diz, são precisos dois para (dançar) o tango. Nada podia ser mais verdade no kendo. Concentremo-nos um bocadinho, nas palavras de Teruhiko Kurasawa, 9º Dan Hanshi:

“Para o keiko, é preciso lembrar sempre que, antes de mais, precisamos de um oponente. E é só porque temos esse oponente que podemos usufruir e melhorar o nosso kendo. (…) Assim, devemos sempre respeitar o parceiro e agradecer a sua ajuda no nosso treino.”

Hum... será por isso que, cada vez que mudamos de parceiro durante as aulas, se saúda sempre a pessoa com quem vamos praticar e aquela com que acabámos de praticar? Mas, deixa cá ver... por essa ordem de ideias, deve ser também por isso que se saúda o local onde treinamos, afinal, sem dojo também não há keiko. E os senseis e os sempais e tudo o resto... pff, as coisas que eu me lembro.