Para onde quer que se vire, por onde quer que vá, qualquer que seja o caminho que escolha percorrer, o recém-chegado ao mundo das artes marciais japonesas, mais cedo ou mais tarde, ver-se-á confrontado com uma inevitável(?) palavra: bushido.
E tudo é bushido. Tudo.
Quando o “mestre” não sabe explicar o fundamento teórico de um movimento ou gesto técnico, quando não conhece a origem da sua arte, quando o que quer que seja não corre bem, logo se atira, qual remédio (remendo?) universal para todas as maleitas marciais... o bushido.
O golpe parece ilógico? O bushido explica. Não tem aplicação prática? O bushido, com a sua tremenda profundidade, fruto de séculos e séculos de aperfeiçoamento, imediatamente resolve.
O bushido é a panaceia universal do budo e está por toda a parte.
Na TV, o comentador de K1 (kick-boxing) define os combatentes como “estes guerreiros do bushido”.
Na internet, nos sites mais variados, dedicados às artes marciais mais variadas, toda a gente, toda, reclama para a sua um poucochinho de bushido.
Nas revistas o bushido tem honras de capa. Há até uma (cada vez pior) revista chamada “Karaté-bushido”.
Há até quem “crie e desenvolva” artes marciais, baseadas, pasme-se, nas "técnicas do antigo bushido".
Basicamente pode dizer-se que o bushido está para o budo como o fermento para doçaria portuguesa.
O bushido é isto tudo? Chegamos assim àquele momento fatídico em que inevitavelmente somos forçados, mais que não seja pela curiosidade crescente, a perguntar:
Mas afinal... sim, afinal o que raio é essa coisa do bushido?
Então, não tem nada que saber - dirá o “mestre” do lado. - O bushido é o antiquíssimo código de conduta dos samurais.
Nem tanto, responde modestamente este vosso humilde escriba. O bushido de que toda a gente fala e refere foi “inventado” já a “raspar” o século XX. Mais exactamente, foi obra de um homem, nascido precisamente no mesmo ano que Sasaburo Takano, de seu nome Inazo Nitobe (1862-1933), que nesse não tão antiquíssimo ano de 1899 (há quem diga 1905) publicou Bushido, the Soul of Japan (Bushido, a Alma do Japão).
E quem era então Inazo Nitobe?
Se mencionei que Inazo Nitobe (IN) nasceu no mesmo ano de S. Takano foi apenas como referência temporal porque, na verdade, as suas vidas não têm, além desse facto, a menor semelhança.
IN nasceu, tal como já disse 1862 mas embarcou quase de seguida numa educação que de certa maneira o isolou imediatamente dos acontecimentos da sua época. Começou a estudar inglês aos nove anos e depois de alguns anos de estudo em Tokyo foi enviado, aos quinze anos, para Hokkaido; aí abraçou a fé cristã e estudou principalmente Economia Agrícola, em língua inglesa e com professores americanos.
Nessa terra, que apenas então começava a ser considerada parte real do Japão, IN estava basicamente isolado das correntes culturais da época Meiji em todos os sentidos: espacial, cultural, religiosa e até linguisticamente.
Não vamos agora, aqui, batalhar muito sobre os problemas que o passado de IN criou aos seus escritos sobre o Japão. De uma maneira simples, digamos que não tinha senão um entendimento muito superficial acerca da história e da literatura japonesas, tal como os seus inúmeros erros demonstram, tanto nos textos japoneses como ingleses (IN admitiu-o, aliás, frente aos seus críticos japoneses mas não aos estrangeiros). Ele simplesmente não lera praticamente nenhum dos textos clássicos japoneses.
E nenhum dos trabalhos de IN foi mais aclamado do que, precisamente, o mencionado “clássico” Bushido que, no entanto, é sem duvida o mais inexacto de todos os seus livros.
IN nem tinha consciência (quando escreveu o livro) que o termo “bushido” já existia. Estava convencido que a palavra bushido era obra sua e revelou grande surpresa quando, anos mais tarde, um compatriota seu lhe chamou a atenção para o facto de a mesma existir desde, pelo menos, o período Tokugawa.
Durante o surto de nacionalismo que acompanhou as vitórias nas guerras sino e russo-japonesas o livro de IN, mas sobretudo o seu conceito de bushido, capturou os espíritos de muitos dos seus conterrâneos. (Tal como hoje nas artes marciais) o bushido estava em toda a parte.
Nakariya Kaiten escreveu sobre o bushidó como a religião do Japão.
Takagi Takeshi comparou o bushido ao código de cavalaria.
O colega de IN, e também cristão, Uchimura Kanzó chegou ao ponto de imaginar o bushido como:
“... a melhor criação do Japão... a cristandade apoiada sobre o bushido será a melhor criação do mundo.
Salvará não apenas o Japão mas todo o mundo.”
A informação, senhores mestres, a informação.
Há um ditado japonês que diz mais ou menos assim: “Não é vergonha ser ignorante. Vergonha é não perguntar e permanecer ignorante.”
Se há coisa que não falta nos tempos que correm é informação. E que nos diz a informação existente sobre o assunto?
Primeiro, que o bushido dos séculos XIX e XX pouco ou nada tem a ver com os princípios éticos e comportamentais dos samurais desde a fundação da sua classe por voltas do século VII da nossa era, e que foram mais ou menos explicitados, por exemplo, no Hagakure de Tsunemono Yamamoto ou no Budoshoshinshu de Daidoji Yozan, (apenas) nos séculos XVII e XVIII.
Uma época aliás, de paz, onde o importante era a criação de um código de conduta para uma classe social que, tendo sido criada exclusivamente para a guerra, se encontrava profundamente “debilitada” na sua função. Os samurai desses tempos eram burocratas e administradores e não guerreiros. Assim, as ideias apresentadas são muito mais uma mera declaração de “boas-intenções” do que um retrato fiel do comportamento dos guerreiros japoneses.
Depois, sabe-se que, desde o princípio da sua existência, a relação entre os samurais e os seus senhores era contratual. Ou seja, dependia muito do interesse e vantagens mútuas. Os guerreiros medievais permaneciam fiéis aos seus senhores, apenas enquanto beneficiavam com isso e mudavam rapidamente de partido assim que as situações lhes permitia, sendo inclusive históricas várias mudanças de campo, por vezes mesmo a meio de batalhas.
Tanto pior para o primeiro princípio do bushido, a lealdade, tão comumente apregoado pelos seus “vendedores”.
Afinal em que é que ficamos?
Lealdade, veracidade, honra, blablabla...blablabla. Por muito bonitos que esses ideiais possam ser, encarar Bushido, the Soul of Japan como sendo uma referência, um código universal de ética e de “comportamento samurai”, que se pode recitar tal como os Dez Mandamentos, parece-me um disparate monumental.
Os, mais líricos que autênticos, escritos onde o bushido provavelmente se apoia nem foram criados para toda a população japonesa, quanto mais para gaidjins. Foram sim criados para descrever - e prescrever - um comportamento ideal de uma determinada classe social, num determinado ambiente social e num determinado momento histórico.
Como diz Karl Friday: “Não tivessem eles sido cremados e Yamamoto Tsunemoto, Daidóji Yúzan e Yamaga Sokó (...) possivelmente estariam às voltas nos seus túmulos.”
Além do mais, o bushido foi fruto de uma época. Escrito por um (quase)estrangeiro “ignorante” da realidade japonesa foi aproveitado, empolado, sobrevalorizado, elevado a um nível semi-religioso pelos motivos mais oportunística e politicamente torpes. Foi trave-mestra para surtos de nacionalismo fascistas, justificação para guerras e desculpabilização de massacres.
O BUSHIDO NÃO TEM LUGAR NO BUDO MODERNO.
Diga-se o que se quiser, o objectivo das artes marciais modernas não é criar guerreiros melhores. O objectivo do budo moderno (N.A: pleonasmo), tal como se pode ver na mission statement da Nippon Budokan, é criar pessoas melhores.
Por isso, faço minhas as palavras de Almada Negreiros, poeta, modernista e tudo:
“Morra o bushido, morra... pim.”
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2 comentários:
He he he...confesso que me sinto um priviligiado por ter tido a oportunidade de me ter sido explicado pessoalmente muito do que decidiste resumir neste fantástico post.
Acho que é em assuntos como este que mostramos a nossa verdadeira ignorância em relação a muitos aspectos da arte que praticamos.
Pessoalmente, acreditei até muito recentemente na existência do Bushido como descrito por Inazo Nitobe, mas de facto à medida que ia pesquisando um pouco mais sobre o assunto, muitas dúvidas iam surgindo e via as respostas muitas vezes perdidas em traduções muito incorrectas e por vezes em fontes cuja credibilidade deixava muito a desejar.
Foi com grande supresa que certo dia recebo na minha caixa de correio uns textos de Karl Friday, enviados pelo excelentissimo autor deste blog, e que me despertaram imenso a curiosidade. È com grande prazer que vejo essa mesma mensagem sob a forma de um post.
Muitos parabens Joaquim!! Uma excelente iniciativa e por favor nunca percas esse sentido critico que te leva a descobrir tanta coisa que o povo desconhece.
Um grande abraço e uma continuação de boas férias....
Tiago Veiga
A verdade é que isto está uma salganhada desgraçada. As pessoas escrevem o que lhes dá na real gana e ninguém se importa. Ainda hoje estava a ver um blog dum tipo de karaté goju-ryu que dizia e passo a citar:
"(...) durante a primeira semana de Agosto mais um estágio de Wado-Ryu (...). Apesar de estar de férias com a família, lá peguei no fato branco e fui treinar (...) o estilo dos samurais."
Como é que é? Importa-se de repetir?
Só espero que ele esteja a ser irónico.
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