31.8.06

UM “GANDA” DESABAFO

Há uns tempos atrás fui almoçar com um amigo. A conversa deu uma volta ou duas e foi parar à moda das “bruxarias new age”. E enquanto desancávamos nas runas e nos fins-de-semana esotérico-energéticos em Sintra, nos cursos de descoberta pessoal através da aura (a aura, aura, tanto que eu poderia dizer acerca da aura), nos tarots e feng-shuis da vida moderna, apercebi-me, ou foi o meu amigo que me chamou a atenção, já não me lembro bem, que um fenómeno muito semelhante se passa com o mundo das artes marciais.

(Faço aqui um pequeno parênteses para vos dar a conhecer o extremo estado de ansiedade que me assalta no momento em que escrevo estas palavras. Há uma sensação de impotência que me acode enquanto tomo consciência que estas mesmas palavras podem ser lidas como uma justificação, mesmo para os malandros que um pouco por todo o lado vendem “gato por lebre”.
De qualquer maneira, diga eu o que disser, esta batalha está perdida à partida, mas adiante.)

Sócrates dizia que a verdade já reside em nós; só temos é de fazer com que ela saia cá para fora. E uma conversa inocente à volta de um arroz de polvo malandrinho pode ter um efeito tão revelador como todas as ironias e maiêuticas do velho sábio grego.

A frase mágica que saiu dos lábios do meu amigo foi algo como:
- Não te esqueças que no fim, lá atrás disso tudo, está sempre alguém a ganhar bom dinheiro com o negócio.
Ora, eu tenho um faro do caraças para detectar o que normalmente chamo o bullshido. Tenho. São muitos anos que é que vos posso dizer? Desculpem lá esta pequena imodéstia e continuemos.

Voltei para casa pensativo e liguei-me à internet. Na minha caixa do correio, qual confirmação dos meus receios, um e-mail de uma Associação Nihon-Tai-Budo-Shoshen-Ryu-Jutsu qualquer convidava-me para estar presente num estágio de um tal Soké-Shihan-Sifu Billy Batmuma, 13º dan e meio na misteriosa arte marcial do Origami-Ninjutsu-Tekai, um ramo da lendária escola Ikebana-Pachinko-Bujutsu originária de Okinawa de Baixo.
É claro que, acompanhada de um sorriso de desprezo irónico, foi imediatamente enviada para o lixo.
No entanto, as palavras do meu amigo lá estavam. E soavam como sinos na minha cabeça:
- ... no fim, lá atrás disso tudo, está sempre alguém a ganhar bom dinheiro com o negócio.

Mas seria possível que alguém ganhasse dinheiro com um embuste tão óbvio? Recusava-me a acreditar em semelhante coisa. As pessoas, os budokas em Portugal não são assim tão ingénuos... ou são?

O motivo que me levou a escrever hoje este texto prende-se com o facto de, enquanto surfava um bocadinho entre os blogs e sites que constituem o meu pequeno mundo marcial virtual, o facto dizia, de ter encontrado fotos e comentários acerca do tal estágio com o Soké-Shihan-Sifu Batmuma.

E a minha alma está parva, como se costuma dizer. E das duas uma: ou sou muito cínico ou muito ingénuo... certo é que tenho mau fundo, como dizia o outro.

Mas ninguém vê que aquilo é um monte de bullshido? Ninguém percebeu que os títulos que o homem deste caso dizia ostentar são títulos FAMILIARES (de família) japoneses que um ocidental não pode nunca ostentar? Mas ninguém lê nada nesta pôrra deste mundo? Comem a primeira patranha que lhes dão assim? Sem mais nem menos?

Que fome é esta? É como ir a um restaurante, a pagar um mão-cheia de dinheiro por um prato ricamente temperado de especiarias exóticas e coloridas, por baixo das quais está, nem mais nem menos, que uma gigantesca porção de nada.

Nada? Se calhar é aí que reside o meu erro.
Bem me lembro, já lá vão uns anitos, de assistir, num campeonato de karate, a uma competição de kata (sim, sim os gajos do karate fazem isso), onde um rapaz, enquanto se babava de extãse e satisfação ao ver o seu sensei (à época com 2 ou 3 dans) competir, repetia, embevecido, para a direita e para a esquerda a quem o quisesse ouvir:
- É o maior. O meu sensei vai ganhar isto nas calmas.
Escusado será dizer que, entre talvez trinta participantes, o sensei dele deve ter ficado classificado do 27º para baixo... e ex-equo. Ainda me lembro até que essa competição foi ganha pelo Sensei Gomes da Costa que executou uma impressionante Suparimpe... bom, seguimos.

Volto à ideia anterior. Nada? Há muita gente que não pensa assim. Vão lá dizer aos que participaram no estágio, que “o homem”, sim, que o Mestre Batmuma não é legítimo. Para muitos poderá até ter sido o momento marcial definidor das suas vidas. Tal como para o rapaz que assistia à execução medíocre do seu sensei na competição de kata. É tudo uma questão de referências.

Não sou dono da verdade, não senhor... mas também não tenho ilusões. E disse-o logo no parênteses inicial deste post. Porque enquanto os budokas portugueses não se informarem, não lerem, não se interessarem em procurar informação fidedigna, não se preocuparem com cruzar essa informação... enquanto não se habituarem também, e parece um contra-senso, a duvidar do que lêem, enquanto todas essas coisas, todas, não acontecerem, vai haver muito Marco Paulo das artes marciais a ser tomado por Mozart e muito boa gente a aplaudir o “Eu tenho dois amores” convencida que é o “Requiem”.

E no fim, lá atrás disso tudo, estará sempre alguém a ganhar bom dinheiro com o negócio.

30.8.06

EMPATE

A apenas 24 horas do final da votação para a eleição de Kendoka do Ano e Kendoka Revelação a situação está ao rubro.

Se na categoria Kendoka do Ano, o vencedor está já praticamente definido, na outra categoria, Kendoka Revelação, dois kenshis têm-se teimosamente mantido empatados desde o início da contagem dos votos.

Estas primeiras eleições, contrariamente às (minhas próprias) expectativas, não podiam estar mais cerradas.

Se ainda não votou, despache-se. Amanhã já é dia 31.

29.8.06

THE MAGNIFICENT SIX... HEU... FIVE!!!

(Esq. p/ dir.: Nuno, ... , Sérgio, Henrique, Paulo e Luis)

Já está decidida a "versão final" da Selecção Nacional que nos vai representar em Dezembro próximo nos 13ºs Campeonatos do Mundo de Kendo, que terão lugar em Taiwan.
Dos seis primeiros classificados do ranking apenas um (adivinhem quem) não vai estar presente a defender as cores da Lusa Pátria.

Assim mesmo, a Direcção Técnica da APK decidiu enviar apenas os cinco "indispensáveis" para a competição de equipas.

Desde já, boa sorte aos Magníficos Cinco.

Gambatéééé.

28.8.06

JODAN


Kendo keiko, supostamente numa foto dos anos vinte, supostamente na Escola Agrícola de Tóquio.
O que não é suposto, pelo contrário, é bem real, é o soberbo jodan-kamae do kendoka da esquerda.
É bonito, jodan kamae é sempre bonito.

De notar que o pé direito está todo assente no chão e a distância entre os pés é maior do que na posição moderna... muito mais parecido com a actual posição dos pés de waki-gamae [shumoku-ashi (?) acho eu que se chama].

Nice. Muito nice.

TODAS AS DEFINIÇÕES, CONCEITOS E PALAVRAS ESQUISITAS DO KENDO QUE OUVIU NAS AULAS E LEU NOS LIVROS E NUNCA SOUBE O QUE SIGNIFICAM NEM ONDE PROCURAR.

Por falar em kigurai, shidachi, depois de executar o kote em nihonme, volta para o eixo central do kata para terminar; ele deve "demonstrar" kigurai, seme ou kime?

Esta e outras perguntas e definições estarão em breve à sua disposição, amigo kendoka, no
1º Dicionário de Kendo Japonês-Português (1º DKJ-P) "editado" neste mesmo espaço por este vosso criado.

Directamente pilhado do Japanese-English Dictionary of Kendo, editado pela Zen Nippon Kendo Renmei, o 1º DKJ-P é uma obra fundamental que todo o kendoka português deve possuir na sua estante virtual.

Impressione e irrite os seus colegas de treino e amigos com aquelas "perguntas de algibeira" que ninguém sabe responder. Cientificamente estudado para todos os casos, o 1º DKJ-P é também ideal para animar festas de crianças, nos intervalos do cinema, nos autocarros, e em todo o lado.

Mas há mais, o 1º DKJ-P contém assuntos especificamente indicados para meter conversa na discoteca na sexta-feira à noite.

Em breve, num blog perto de si.

Disclaimer: os editores do 1º Dicionário de Kendo Japonês-Português, não se responsabilizam pelo mau/indevido uso do mesmo, nem por agressões/ofensas dos colegas fartos da sua "chico-esperteza", crianças aborrecidas de morte com as suas parvoíces ou se você ficar a falar "pro boneco" na discoteca. Get a life.

25.8.06

JODAN VS JODAN


David Bell vs J. Schmidt durante o Bowden Taikai 2005.


Como já disse antes, uma vez que não me apetece dizer nada de novo... aqui está uma mais imagem de jodan-kamae, ou serão duas?

Esta imagem foi gentilmente cedida por Jakob Schimdt e, tal como outras do género, pode ser encontrada no seu blog em www.kigurai.com.

RELAX

E agora, porque ainda faltam alguns dias até ao recomeço dos treinos, aqui fica um par de clips relaxantes para descontrair. Divirtam-se:

http://video.google.com/videoplay?docid=3206096042854433992&q=tsuki

http://www.youtube.com/watch?v=qH1_zBf1aLs&search=kendo%20tsuki

Então que tal? Estamos mais descontraídos ou quê? O primeiro então, é muito relaxante não é?

20.8.06

DOENÇAS INFANTIS DAS ARTES MARCIAIS JAPONESAS 2 - O BUSHIDO CRÓNICO

Para onde quer que se vire, por onde quer que vá, qualquer que seja o caminho que escolha percorrer, o recém-chegado ao mundo das artes marciais japonesas, mais cedo ou mais tarde, ver-se-á confrontado com uma inevitável(?) palavra: bushido.

E tudo é bushido. Tudo.

Quando o “mestre” não sabe explicar o fundamento teórico de um movimento ou gesto técnico, quando não conhece a origem da sua arte, quando o que quer que seja não corre bem, logo se atira, qual remédio (remendo?) universal para todas as maleitas marciais... o bushido.

O golpe parece ilógico? O bushido explica. Não tem aplicação prática? O bushido, com a sua tremenda profundidade, fruto de séculos e séculos de aperfeiçoamento, imediatamente resolve.

O bushido é a panaceia universal do budo e está por toda a parte.

Na TV, o comentador de K1 (kick-boxing) define os combatentes como “estes guerreiros do bushido”.
Na internet, nos sites mais variados, dedicados às artes marciais mais variadas, toda a gente, toda, reclama para a sua um poucochinho de bushido.
Nas revistas o bushido tem honras de capa. Há até uma (cada vez pior) revista chamada “Karaté-bushido”.
Há até quem “crie e desenvolva” artes marciais, baseadas, pasme-se, nas "técnicas do antigo bushido".

Basicamente pode dizer-se que o bushido está para o budo como o fermento para doçaria portuguesa.

O bushido é isto tudo? Chegamos assim àquele momento fatídico em que inevitavelmente somos forçados, mais que não seja pela curiosidade crescente, a perguntar:

Mas afinal... sim, afinal o que raio é essa coisa do bushido?

Então, não tem nada que saber - dirá o “mestre” do lado. - O bushido é o antiquíssimo código de conduta dos samurais.

Nem tanto, responde modestamente este vosso humilde escriba. O bushido de que toda a gente fala e refere foi “inventado” já a “raspar” o século XX. Mais exactamente, foi obra de um homem, nascido precisamente no mesmo ano que Sasaburo Takano, de seu nome Inazo Nitobe (1862-1933), que nesse não tão antiquíssimo ano de 1899 (há quem diga 1905) publicou Bushido, the Soul of Japan (Bushido, a Alma do Japão).

E quem era então Inazo Nitobe?

Se mencionei que Inazo Nitobe (IN) nasceu no mesmo ano de S. Takano foi apenas como referência temporal porque, na verdade, as suas vidas não têm, além desse facto, a menor semelhança.
IN nasceu, tal como já disse 1862 mas embarcou quase de seguida numa educação que de certa maneira o isolou imediatamente dos acontecimentos da sua época. Começou a estudar inglês aos nove anos e depois de alguns anos de estudo em Tokyo foi enviado, aos quinze anos, para Hokkaido; aí abraçou a fé cristã e estudou principalmente Economia Agrícola, em língua inglesa e com professores americanos.
Nessa terra, que apenas então começava a ser considerada parte real do Japão, IN estava basicamente isolado das correntes culturais da época Meiji em todos os sentidos: espacial, cultural, religiosa e até linguisticamente.

Não vamos agora, aqui, batalhar muito sobre os problemas que o passado de IN criou aos seus escritos sobre o Japão. De uma maneira simples, digamos que não tinha senão um entendimento muito superficial acerca da história e da literatura japonesas, tal como os seus inúmeros erros demonstram, tanto nos textos japoneses como ingleses (IN admitiu-o, aliás, frente aos seus críticos japoneses mas não aos estrangeiros). Ele simplesmente não lera praticamente nenhum dos textos clássicos japoneses.

E nenhum dos trabalhos de IN foi mais aclamado do que, precisamente, o mencionado “clássico” Bushido que, no entanto, é sem duvida o mais inexacto de todos os seus livros.
IN nem tinha consciência (quando escreveu o livro) que o termo “bushido” já existia. Estava convencido que a palavra bushido era obra sua e revelou grande surpresa quando, anos mais tarde, um compatriota seu lhe chamou a atenção para o facto de a mesma existir desde, pelo menos, o período Tokugawa.

Durante o surto de nacionalismo que acompanhou as vitórias nas guerras sino e russo-japonesas o livro de IN, mas sobretudo o seu conceito de bushido, capturou os espíritos de muitos dos seus conterrâneos. (Tal como hoje nas artes marciais) o bushido estava em toda a parte.

Nakariya Kaiten escreveu sobre o bushidó como a religião do Japão.
Takagi Takeshi comparou o bushido ao código de cavalaria.
O colega de IN, e também cristão, Uchimura Kanzó chegou ao ponto de imaginar o bushido como:
“... a melhor criação do Japão... a cristandade apoiada sobre o bushido será a melhor criação do mundo.
Salvará não apenas o Japão mas todo o mundo.”


A informação, senhores mestres, a informação.

Há um ditado japonês que diz mais ou menos assim: “Não é vergonha ser ignorante. Vergonha é não perguntar e permanecer ignorante.”

Se há coisa que não falta nos tempos que correm é informação. E que nos diz a informação existente sobre o assunto?

Primeiro, que o bushido dos séculos XIX e XX pouco ou nada tem a ver com os princípios éticos e comportamentais dos samurais desde a fundação da sua classe por voltas do século VII da nossa era, e que foram mais ou menos explicitados, por exemplo, no Hagakure de Tsunemono Yamamoto ou no Budoshoshinshu de Daidoji Yozan, (apenas) nos séculos XVII e XVIII.
Uma época aliás, de paz, onde o importante era a criação de um código de conduta para uma classe social que, tendo sido criada exclusivamente para a guerra, se encontrava profundamente “debilitada” na sua função. Os samurai desses tempos eram burocratas e administradores e não guerreiros. Assim, as ideias apresentadas são muito mais uma mera declaração de “boas-intenções” do que um retrato fiel do comportamento dos guerreiros japoneses.

Depois, sabe-se que, desde o princípio da sua existência, a relação entre os samurais e os seus senhores era contratual. Ou seja, dependia muito do interesse e vantagens mútuas. Os guerreiros medievais permaneciam fiéis aos seus senhores, apenas enquanto beneficiavam com isso e mudavam rapidamente de partido assim que as situações lhes permitia, sendo inclusive históricas várias mudanças de campo, por vezes mesmo a meio de batalhas.

Tanto pior para o primeiro princípio do bushido, a lealdade, tão comumente apregoado pelos seus “vendedores”.

Afinal em que é que ficamos?

Lealdade, veracidade, honra, blablabla...blablabla. Por muito bonitos que esses ideiais possam ser, encarar Bushido, the Soul of Japan como sendo uma referência, um código universal de ética e de “comportamento samurai”, que se pode recitar tal como os Dez Mandamentos, parece-me um disparate monumental.

Os, mais líricos que autênticos, escritos onde o bushido provavelmente se apoia nem foram criados para toda a população japonesa, quanto mais para gaidjins. Foram sim criados para descrever - e prescrever - um comportamento ideal de uma determinada classe social, num determinado ambiente social e num determinado momento histórico.
Como diz Karl Friday: “Não tivessem eles sido cremados e Yamamoto Tsunemoto, Daidóji Yúzan e Yamaga Sokó (...) possivelmente estariam às voltas nos seus túmulos.”

Além do mais, o bushido foi fruto de uma época. Escrito por um (quase)estrangeiro “ignorante” da realidade japonesa foi aproveitado, empolado, sobrevalorizado, elevado a um nível semi-religioso pelos motivos mais oportunística e politicamente torpes. Foi trave-mestra para surtos de nacionalismo fascistas, justificação para guerras e desculpabilização de massacres.

O BUSHIDO NÃO TEM LUGAR NO BUDO MODERNO.

Diga-se o que se quiser, o objectivo das artes marciais modernas não é criar guerreiros melhores. O objectivo do budo moderno (N.A: pleonasmo), tal como se pode ver na mission statement da Nippon Budokan, é criar pessoas melhores.

Por isso, faço minhas as palavras de Almada Negreiros, poeta, modernista e tudo:
“Morra o bushido, morra... pim.”