24.3.04

A ESCOLA DA PACIÊNCIA - revista e actualizada

Consegui desenterrar um artigo que escrevi, já lá vão uns tempos, para a revista do Diário Económico. Estava, imagine-se, no site da AMK de Brasília. Depois de umas pequenas revisões, nomeadamente uns disparates enormes referentes ao Bushido, ei-lo aqui. Intitula-se, tal como o original, Kendo - a escola da paciência.


Encaminham-se lentamente um para o outro. Saúdam-se com a reverência de quem se vai matar. Durante uns intermináveis momentos apenas as pontas dos shinais se movem, entrelaçando-se na busca da distância e do eixo central, indispensáveis para o sucesso. Para um leigo os dois kendokas permanecem estáticos, mas na verdade eles atacam a cada instante.

KENDO, A ESCOLA DA PACIÊNCIA

Data do ano 400 da era cristã a primeira referência ao uso do bokken como utensílio de treino entre os guerreiros japoneses. O bokken (bo - madeira; ken - espada) tentava reproduzir o mais fielmente possível o formato, tamanho e peso de uma espada real e a sua utilização subsistiu até aos nossos dias, onde a sua presença se manifesta nas mais variadas artes marciais japonesas, incluindo certas partes do treino de kendo.

Entre o fim do período Nara (710-784) e o princípio do período Muromachi (1336-1568), o desenvolvimento das técnicas de Kenjutsu (uso da espada) é muito lento. E é precisamente neste último período que se dá a implementação da classe samurai. Assim, não é de estranhar que se assista ao renascimento da popularidade do kenjutsu, com a abertura das primeiras escolas de esgrima, apelidadas de dojos. Cada dojo era, em regra, dirigido por um mestre de esgrima excepcionalmente forte, o qual se encarregava do ensino do kenjutsu aos jovens bushi, ou guerreiros.

À medida que desenvolviam as suas técnicas de combate e elas provavam ser factores essenciais de sobrevivência em combate real, quer em duelo quer em batalha, cada um desses mestres tornava-se famoso pelo seu estilo próprio de combater, estilo que não raramente passava a usar o seu nome. Nagahide Chujo, por exemplo, criou o Chujo-ryu (ryu - escola) por volta de 1380.

Mas é só nos fins do sec. XVII princípios do sec. XVIII que começam a surgir preocupações por parte de alguns grandes mestres de kenjutsu sobre a qualidade das protecções até então utilizadas pelos praticantes. Zesuiken lba, Kanshin Teranishi e Tadaaki Ono foram alguns dos que, assustados com a quantidade de mortos e feridos nos dojos, protagonizaram as primeiras tentativas de criar protecções individuais mais eficazes para os alunos.

No entanto, é a Chuta Nakanishi (por volta de 1750), fundador da escola Nakanishi Itto-ryu, que se devem as contribuições mais significativas para o desenvolvimento do que é actualmente o equipamento do kendoka moderno.

Durante os seus tempos de estudante de kenjutsu na escola de Chuichi Ono IV, Chuta era considerado muito melhor esgrimista do que o seu mestre. O respeito que nutria pelo professor levou-o a sair do dojo de Ono e a abrir a sua própria escola. Apesar de descontente com o novo tipo de espada feita de canas, inventada pelo seu professor, Chuta cedo se apercebeu das inúmeras vantagens que a mesma apresentava face ao bokken. Assim, decidiu-se a melhorar tanto o design como a utilização da dita espada construída com canas. Primeiro criou os kote, as luvas protectoras, depois redesenhou totalmente a espada de canas. Em vez das dezasseis ou trinta e duas finíssimas ripas de bambu envolvidas por uma cobertura de pele, Chuta Nakanishi optou por fazer a sua nova espada com apenas quatro ripas de bambu. Quatro peças seleccionadas, mais largas, mais bem equilibradas e muito polidas, que se encaixavam umas nas outras e que, atadas com uma tira de cabedal, formavam uma estranha espada cilíndrica. Nascera o shinai.

Entre 1765 e 1770 Nakanishi continuou a desenvolver o equipamento de protecção do praticante de kenjutsu. Primeiro o do, ou protector do peito, e depois o tare, o protector do baixo ventre. Por volta de 1780 o men, a máscara protectora da cabeça, já se encontrava em utilização em inúmeros dojos, conjuntamente com todos os outros protectores atrás mencionados. É também por esta altura, aliás, que os praticantes deste tipo de kenjutsu começam a chamar esta forma diferente de estar e de treinar com outro nome. É assim que cada vez mais se começa a ouvir falar de kendo, literalmente, "a via da espada".

Completamente libertos do perigo durante a prática, os jovens samurais podiam agora treinar todos os golpes de uma maneira realista. Em 1871, o Ministério da Educação Japonês criou uma regulamentação que tomou obrigatória a prática do kendo em todas as escolas públicas e privadas do Japão. Apenas um ano depois, em 1872, ocorre na sociedade japonesa um acontecimento que iria dar ao kendo a oportunidade que lhe faltava para se instalar definitivamente como a arte marcial da espada por excelência: um decreto imperial dissolve a classe samurai e impede os seus antigos membros de usar a espada em público.

Se num primeiro momento, as artes marciais vão ser entendidas como algo de desnecessário face à crescente sede de ocidentalização da sociedade japonesa, por outro, há já muitos séculos que o espírito do Budo (a prática das artes marciais) se tomara uma parte integrante da mesma.

Desmarcializado, digamos assim, transformado num desporto cuja prática não oferece qualquer perigo, o kendo toma-se no herdeiro directo da tradição de combate com espada japonesa.

Hoje o kendo ‚ um desporto de combate que conta com mais de oito milhões de praticantes, só no Japão, e que se encontra solidamente implantado um pouco por todo o mundo, com especial destaque para os Estados Unidos da América, o Brasil e a Coreia.

O que faz com que o kendo seja um tamanho sucesso? Já ninguém anda de espada à cintura e, para mais, as características deste desporto de combate não são com certeza ideais para quem busca uma disciplina que o ajude em caso de auto-defesa. É um facto. Se o que espera é algo que o ajude a vencer três assaltantes com uma só mão, enquanto com a outra continua a segurar um gelado de baunilha, então esqueça.

O primeiro choque para quem começa a praticar kendo prende-se com o pequeno número de técnicas utilizadas pelos praticantes. Comparando o kendo com uma linguagem, dir-se-ia que o vocabulário do kendo é composto por meia dúzia de palavras; assim, por exemplo, a quantidade de ataques que o kendoka utiliza são basicamente três: men, do e kote, que é como quem diz: ataque à cabeça, ao tronco e ao pulso.

Desiludam-se, no entanto e desde já, aqueles que pensam que se trata de uma arte marcial pouco elaborada. Pelo contrário. Sob esse aspecto de simplicidade esconde-se uma actividade de grande beleza formal, uma busca de perfeição estética dia após dia, mês após mês, ano após ano e onde a repetição exaustiva das técnicas base é parte integrante e indispensável do treino.

"É preciso fazer um kendo mais bem feito, mais bonito." aconselha diariamente o mestre M. Osaka aos seus alunos.

Sem exagerar muito, pode-se dizer que o treino realizado por um conjunto de mestres e o treino de um grupo de principiantes é, na sua base, o mesmo. O resultado visual, no entanto, é completamente diferente.

Durante a prática diária de combate, ou mesmo em competição, noutras artes marciais japonesas tradicionais, como o karate ou o judo, é normal que a eficácia se sobreponha à execução técnica dos movimentos. O que importa é acertar no adversário e muitas vezes isso por si só é suficiente para se ganhar um combate. No combate de kendo as coisas não são tão simples. É preciso acertar sim, mas com uma postura e uma atitude perfeitas. É preciso que aos olhos do árbitro a técnica executada "possua" ki-ken-tai no ichi, por outras palavras, é imperativo que o espírito (ki), a espada (ken) e o corpo (tai) estejam unidos num só (ichi).

Mais do que fazer rapidamente, é preciso fazer bem, mesmo que se faça mais devagar. Perante semelhante raciocínio só nos apetece perguntar outra vez: "Mas afinal qual é a importância do kendo? Para que serve tamanho anacronismo?" A resposta é bem mais simples que a pergunta: Para se ser melhor. Para, ao aprofundar a dimensão simbólica do confronto, daí retirar lições para a vida do dia-a-dia. Se, no princípio, tudo se resumia a "Um gesto, uma vida.", hoje, ganhar ou perder continua a ser muito importante, mas ninguém deve ficar satisfeito consigo próprio só porque ganhou um combate. Mais importante, sim, é tentar corrigir pacientemente as insuficiências e apostar constantemente na formação de um "eu" que seja, ao mesmo tempo, física, intelectual e socialmente melhor.

E é tudo isso, com certeza, que faz com que o kendo seja provavelmente dos poucos desportos de combate onde não é raro ver um praticante de sessenta anos de idade vencer um outro de trinta. Qual o segredo do sucesso do ancião? Digamos que uns trinta anos de paciência a mais do que o jovem.

Revista Demais - Diário Econômico
27.Janeiro.2001

SORRY, NO ENGLISH TRANSLATION.

1 comentário:

Anónimo disse...

bom comeco