As artes marciais japonesas, que daqui em diante designarei por budo, são, possivelmente, uma das mais bem sucedidas exportações culturais de todos os tempos.
Nos locais mais recônditos do planeta e pelos motivos mais variados que podem ir desde a simples “saudade de casa” até razões como treino militar, auto-defesa, exercício físico, preservação da identidade cultural, etc, etc, etc, alguém pratica judo, karate, jukendo, iaido ou qualquer outra forma de budo.
No espectro abrangido entre sociedades totalitárias de esquerda e de direita, passando por todos os tipos de realidade social e cultural, sem olhar a raças, convicções religiosas ou opções sexuais, o budo assenta as suas raízes pacífica mas tenazmente. Onde quer que esteja, Jigoro Kano deve estar muito feliz.
E estranhamente perante tal fartura, se por um lado os “livros técnicos”, chamemos-lhes assim, acerca dos mais variados budos não faltam (muito pelo contrário), qualquer leitor mais atento se dará conta da falta de literatura que se debruce de uma maneira séria sobre os fundamentos teóricos e filosóficos do budo.
Talvez por isso a biblioteca típica dos praticantes de budo de todo o mundo, por mais cépticos que se auto-denominem, está repleta de títulos que reflectem tudo menos cepticismo perante as realidades do combate.
Se, por um lado, se advoga por vezes uma eficácia sem igual acerca do método praticado, por outro, “Segredos do samurai”, “A via zen das artes marciais”, “A arte cavalheiresca do arqueiro zen”, juntamente com obras como “A Mente Imaculada (cartas de um mestre zen para um mestre da espada)” ou o inevitável “Livro dos cinco anéis”, são presença frequente (obrigatória?) nas estantes dos budokas, um pouco por todo o lado.
Mais, são muitas vezes o motivo que leva a que a prática tenha sido iniciada, mas por vezes também, o motor que mantém a dita prática em funcionamento.
Exagero, dirão?
Na sua comunicação “The Myth of Zen in the Art of Archery” (O mito do zen no tiro com arco), Yamada Shoji refere um inquérito de opinião conduzido em 1983 pelo Projecto de Pesquisa de Kyudo (Kyodo Kenkyoshitsu) da Universidade de Tsukuba, onde foi perguntado a 131 praticantes alemães de kyudo o que os tinha levado a iniciar a prática do tiro com arco japonês.
Os resultados foram surpreendentes (?):
Uns “gigantescos” 84% responderam “para treino espiritual”. Cerca de 61% referiram interesse pelo zen e 49% especificaram que tinham começado a praticar kyudo porque tinham lido “A arte cavalheiresca do arqueiro zen” (Zen in der Kunst des Bogenschiessens), escrito por Eugen Herrigel (1884-1955).
Não sendo o objectivo deste post desancar na credibilidade do livro escrito pelo senhor Herrigel (o artigo mencionado acima, fá-lo melhor do que ninguém) gostaria, no entanto, de levantar algumas questões que me parecem pertinentes.
A primeira parece-me óbvia pelo que já foi dito ao longo deste post. A falta de bons livros sobre as teorias e as filosofias do budo, traduzidos para a biblioteca “ocidental”, leva a que os praticantes procurem um pouco de tudo o que lhes pareça que pode ajudar, não só à sua prática diária, mas que lhes forneça algo parecido com alicerces em que possa assentar as suas ideias e convicções acerca da mesma.
Se não, como explicar que um praticante de kendo (e não só de kendo) possa, por exemplo, ter como livro de cabeceira o “Livro dos cinco anéis” de Miyamoto Musashi, uma obra sobre esgrima japonesa escrita no séc. XVI? Como explicar o sucesso de obras como “Bushido”, de Inazo Nitobe (1862-1933), um professor universitário sem qualquer ligação conhecida ao budo e que viveu grande da sua vida fora do Japão?
Escusado será dizer que isso se traduz muitas vezes em mal-entendidos difíceis de sarar. Certas atitudes e hábitos que, na opinião deste vosso escriba, raiam por vezes o ridículo, tornam-se difíceis, senão impossíveis, de contrariar.
Pego, como exemplo, nas palavras do senhor Yamada Shoji acerca da relação entre o kyudo e o zen:
“Se nos confinarmos ao período pós-Meiji (após 1868), a maior parte das pessoas praticaram-no (N.Tr.: ao kyudo) quer como forma de educação física quer pelo simples prazer. Nos textos anteriores à (segunda) guerra, dedicados ao tiro com arco japonês, com a excepção de algumas seitas religiosas isoladas, existem poucas ou nenhumas referências às afinidades entre o kyudo e o zen. Do mesmo modo, entre os praticantes de kyudo japoneses modernos, os que o abordam como uma prática zen são extremamente raros.
Apesar desses factos, livros e comentadores populares continuam a enfatizar a relação entre o tiro com arco japonês e o zen.”
Ki, zen, shin, mushin, fudoshin, seme, kokoro e muitas outras “palavras difíceis” que povoam páginas e páginas, são muitas vezes conceitos que evoluem através dos tempos e que, num texto do séc. XVI, por exemplo, significavam uma coisa e hoje significam uma outra completamente diferente. Se a isso juntarmos as dificuldades de tradução do japonês onde, consoante o contexto, certos conceitos, já de si bastante vagos, podem adquirir as significações mais diversas e o facto de muitos livros já serem uma tradução de uma tradução, qual será a atitude mais certa a tomar?
Deixar simplesmente de ler? Não vou tão longe. Mas parece-me que o melhor será não fazer tanta “fé” na leitura e abordar certos temas mais “mistico-filosóficos” com alguma prudência ou mesmo algum cinismo.
Afinal de contas, por mais livros que se leia, o entendimento do budo passa única e exclusivamente pela prática.
É preciso que nunca nos esqueçamos que, ao invés de uma corrente muito em voga nos dias de hoje e que muita gente segue, e vende, nos seus livros, a filosofia das artes marciais não é constituída por uma mão cheia de valores budistas, duas colheres de chá de zen, um pouco de confucionismo e umas pitadas de xintoísmo.
Esses supostos ensinamentos do budo que muitas vezes são apresentados como moral devem ser, pelo contrário e antes de mais nada, o fruto de uma praxis. Como, e muito bem, diz o sensei Kenji Tokitsu:
“Esse ensinamento é por vezes concebido como moral, mas o seu fundamento é técnico. A arte do combate é uma arte pragmática. Diria que a moral emerge aqui de um pragmatismo levado ao limite. É uma particularidade do budo. Não se trata de uma associação de valores morais à prática das armas.”
Em resumo: se o que se procura nesse tipo de leitura, filosófica, digamos assim, é uma revelação que permita um maior entendimento dos fundamentos do budo, para assim melhorar o desempenho no mesmo, isso parece-me ser um caminho completamente errado.
No budo, as revelações dão-se apenas no dojo, à luz do keiko.
Um lançador de dardo, pode gostar de ler sobre relva.
Pode saber tudo sobre os diferentes tipos de relva que crescem nos estádios onde pratica e compete.
Pode mesmo ser um botãnico especializado em relva.
Pode até cultivar relva com muito sucesso.
Mas tudo isso nunca vai fazer com que o dardo que lança se vá espetar um centímetro sequer a mais do que a sua melhor marca, só porque se vai espetar... na relva.
Próxima doença: o bushido crónico
11.7.06
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3 comentários:
Excelente!! Passaste para texto de que já me tinhas falado antes dos treinos e está deveras excelente. Aqui tenho que confessar que este misticismo esteve e ainda está um pouco presente nas razões que me levaram a praticar Kendo. No entanto, á medida que vão passandos os meses de treino, não podia deixar de concordar mais a tua frase
"No budo, as revelações dão-se apenas no dojo, à luz do keiko."
Gostaria no entanto de te perguntar então uma coisa...
Da mesma forma que este misticismo surgiu num periodo de transformação militar e social, na tentativa de conservar um lugar na sociedade para as artes do Bujutsu, ainda hoje esse misticismo funciona como motor de marketing que apela aos praticantes de artes marciais? Existirá de facto algo de bom a retirar desse misticismo e que de certa forma complemente o Keiko?
(espero estar a fazer-me entender :P)
Um abraço e obrigado por abordares este tema!
Tiago André Veiga
Eu, assim de repente, não me parece que tenha algum valor, para além do facto de "muito malandro" que por aí anda a auto-intitular-se mestre das mais diferentes artes marciais, usar frequentemente esse tipo de argumentos para desculpar, e muitas até, justificar, a sua verdadeira falta de conhecimentos técnicos.
O que me parece importante não é o mistificar dos conhecimentos. Isto é, se ele tiver lugar DEPOIS de se ter tido contacto com a técnica, digamos assim; se tiver nascido da prática. Cada um digere o que aprende (importante: na prática diária) da maneira que mais lhe apetece. Agora se é porque leste o "Livro dos cinco anéis" do MUsashi que de um momento para o outro pensas que sabes tudo acerca de como lutar com uma espada e crês que a tua compreensão do kendo é superior à dos que não leram apesar de praticarem há mais tempo que tu, aí... esquece.
Temo que esse motor de marketing como dizes, infelizmente sim, funcione mas mais para promover o "malandro" do que para os verdadeiros senseis.
Basta ver alguns dos "shaolins da vida", "kobudos de okinawa" e afins que por aí andam.
Até porque os verdadeiros senseis de budo têm muito mais para oferecer do que "vender um peixe" que não acrescenta nada aos seus ensinamentos mais importantes: os técnicos.
O que quero dizer é que sem prática não se consegue nunca aceder aos fundamentos do budo. A sua filosofia e os seus principios são de origem pragmática, mais até técnica, e não, ao contrário do que muita gente diz exclusivamente morais ou intelectuais.
Se DEPOIS da prática, falas, lês ou "comes e calas" isso é uma escolha individual.
Nunca um substituto.
A meditação, ainda tou a meditar se se poderá tb designar como uma doença ou só um estado febril ;-D
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