12.10.06

A AVE RARA 3

Ora aqui está um "rapaz" que teria dado um excelente kendoka.
Kamakura 2005. Foto Usagi San.

Ave ainda mais rara que o Kendum Principiantis, o Kendokam Intermedius (Vulgo: Kendoka Regular) é aquele que não desistiu e, de entre os cinco ou seis que ao mesmo tempo consigo começaram, o único que continuou a treinar.

E o Kendokam Intermedius pode ser a chave para entendermos todo este processo. Apesar de ter percebido que o kendo não lhe vai trazer quaisquer benefícios materiais ou reconhecimento social, não lhe vai (provavelmente) servir como meio de auto-defesa e também não faz dele, com certeza, nenhum Tom Cruise (ou uma Uma Thurman), apesar de tudo isso, há (ou houve num determinado momento do keiko) algo que diz ao Kendokam Intermedius que deve continuar a praticar.

Abro aqui um pequeno parêntese para vos contar uma história: um dos kendokas que eu mais admiro no dojo de Lisboa é o Jaime. O Jaime já não é nenhum jovem e nos primeiros dias em que o vi no dojo, reparei que ele tinha algumas dificuldades no capítulo de condição física. Olhei para ele e “dei-lhe” um mês. Há tantos meses que isso foi. O Jaime percebeu o que queria do kendo, recebeu o seu kendo-gu e todos os dias treina para atingir os seus objectivos.
Não tem a mania dos samurais e, que eu saiba, não vai ser protagonista de nenhum “Kill Bill 3”.
Eu não sei o que ele retira do treino de kendo, mas ele sabe.
E, dito isto, fecho o parêntese.

O semiólogo Roland Barthes, no seu livro A Cãmara Clara, refere-se à fotografia como algo que não pode existir por si só. Para ele, a fotografia em abstracto não existe. Só existe fotografia quando se fotografa algo, quando há um sujeito (mesmo que esse sujeito possa aparentemente ser abstracto).
Acredito que algo de semelhante se passa com o kendo.

Kendo keiko desu.

Não há kendo abstracto. Tal como para Barthes a fotografia não existe sem o objecto fotografado, o kendo não existe sem a sua prática. A compreensão do kendo não se transmite teoricamente, mas sim única e exclusivamente através sua prática.
É por isso que, para mim, fazer mitori-geiko, por exemplo (como tenho feito nos últimos tempos devido à minha tendinite), só faz sentido se existir uma perspectiva de keiko no futuro.
É claro que se pode falar, ler, reflectir, discutir sobre kendo, etc, mas, em última análise, se não houver uma aplicação prática posterior acerca do que se falou, leu, reflectiu ou discutiu, então, na minha opinião, tudo isso não serviu rigorosamente para nada.

Pois a verdade é que kendo É keiko.
E o objectivo é fazer com que o keiko de hoje seja melhor do que o de ontem. Nesse sentido, o kendo não tem outro motivo senão ele próprio. E é isso que é difícil de compreender e, mais ainda, de explicar, por exemplo, a um principiante.
Como é que se explica que o objectivo do treino de hoje é permitir treinar melhor amanhã?

Fazer kendo, e continuando no espírito de R. Barthes, é como fazer todos os dias um auto-retrato. Uma foto que deve evoluir e modificar-se a cada treino.

Eu parece-me que a competição, sobretudo para os mais jovens, pode ser uma boa maneira de os levar a entrar nas vizinhanças do kendo, digamos assim. É muito interessante, pode ser importante mas, no entanto, não creio que seja essencial para a formação de bons kendokas.

A meu ver, mais tarde ou mais cedo, e uma vez terminada a carreira como desportista, esse hipotético praticante, tal como todos os outros, vai ter de fazer a mesma escolha que consiste em continuar a treinar ou não. Já não pelas medalhas, mas tão só pelo prazer que o treino em si próprio proporciona e, claro, por outro lado, pelo esforço, agora já não “recompensado”, que tal decisão acarreta.

Estamos inevitavelmente diante da diferença entre desporto e budo. Esse praticante (dedicado, até aí, ao “desporto-do-kendo”), de certa maneira, ainda não começou a fazer budo. Ganhar ou perder pode ser muito importante, mas os tempos em que o uso da espada culminavam de forma dramática com “um gesto, uma vida” já lá vão, logo, ninguém deve ficar dermasiado satisfeito consigo próprio só porque ganhou um combate.
Até porque a competição hoje é mais uma demonstração de “jutsu” (técnica), chamemos-lhe assim, do que propriamente de “do” (via).

Mas qual é então a utilidade do kendo?
A resposta é muito simples: Melhorar. Para, ao aprofundar a dimensão simbólica do conflito, melhor o entender e daí retirar eventuais lições para a vida do dia-a-dia. Para melhor nos dar a conhecer a nós próprios. É isso afinal, a que O Objectivo de Praticar Kendo da ZNKR se resume.

O kendo é um auto-retrato que pode contribuir para revelar de uma maneira simples mas cruel, muitas das nossas insuficiências, por isso, um bom kendoka é um falhado magnífico.
É alguém que reconhece (e aceita) as suas falhas e compreende que o mais importante é tentar corrigir pacientemente essas insuficiências e apostar constantemente na formação de um "eu" que seja, ao mesmo tempo, física, intelectual e socialmente melhor.
Um keiko de cada vez.

4 comentários:

Unknown disse...

Numa palavra: excelente.

Abraços.

Kodomo disse...

Toda esta sequência de posts foi excelente!

Espero que continues a expor a tua experência desta forma e espero que nunca deixes de aprender, para poderes ensinar, dentro e fora do Dojo.

Um grande Obrigado!

Abraço

António disse...

Isto nota-se logo quando alguém tem muito tempo livre :)

Não estou a brincar....

Realmente é um bom ponto de vista que realmente partilho e redigo de outra maneira. Que o kendoca é um teimoso :)

As melhoras!

Maltez disse...

(...)