19.1.05

REFLEXÃO SOBRE O BUDO: ESTUDO A PARTIR DO KENDO (III)

Para melhor ilustrar o que era o seïgan-tachigirigéïko, apresentamos agora um relato, feito na primeira pessoa, por um aspirante ao título de menkyo-kaîden. Mil e quatrocentos combates ao longo de sete dias. Este texto foi obtido e traduzido, com autorização do autor, sensei Kenji Tokitsu, em http://www.tokitsu.com.

Um exemplo de “tachigiri”
“No primeiro dia de Abril, às seis horas da manhã, a minha prova começou... os meus adversários, cerca de dez, seguiam-se um após outro, cada um combatendo até se sentir exausto. Quando um se cansava, um outro tomava o seu lugar e eles rodavam nas suas posições como uma roda que gira sem cessar. Eu estava em muito boa forma no primeiro dia e executei mesmo alguns “kumiuchi” (corpo a corpo) com violência. Tendo colocado o men de manhãzinha, não o retirei senão quando atingi o final. Quando os cordões se afrouxavam, os outros vinham imediatamente apertá-los, para que eu não pudesse ter um único momento de descanso. Descansei apenas por alguns momentos depois da refeição do meio-dia. Quando terminei os duzentos combates, por volta das cinco e meia da tarde, disse a mim próprio que seria capaz de repetir essa experiência durante sete dias. Mas combater durante onze horas, durante todo um longo dia de Primavera, é muito duro.
Entre os discípulos, um mais antigo chamado Murakami Masatada, observava todos os combates. Veio dizer-me, quando eu me repousava em casa, que a qualidade dos combates não tinha sido suficiente. “O mestre não está satisfeito. É preciso que combata com muito melhor, amanhã.” Prometi-lhe que combateria muito mais bravamente no dia seguinte. Soube depois que tinha dito a mesma coisa a todos os meus adversários. No segundo dia comecei igualmente às seis horas da manhã. Tal como tinha prometido a Murakami Masatada na véspera, tentei arrasar todos os meus adversários o mais bravamente possível, quer através de golpes, quer através de projecções. Mas cada um dos dez discípulos voltava bem descansado, um após outro. Não podia depender senão do meu shinai. O suor corria sem que o pudesse limpar e comecei a sentir uma grande sede. A hora da refeição chegou e pude então descansar um pouco. Mas não consegui almoçar, limitei-me a engolir dois ou três ovos.
Depois do descanso recomecei os combates, mas senti uma enorme fatiga e não me conseguia mexer como de manhã. Não me deixei sucumbir e consegui terminar os meus combates ao fim do dia. Sentia já dores por todo o corpo. No vestiário não consegui dobrar as pernas. Voltei para casa tentando suportar as dores. Deitei-me sem me preocupar com a minha saúde, uma vez que investia toda a minha vida. Só pensei na maneira como iria enfrentar a prova no dia seguinte. No terceiro dia apresentei-me no dojo dando-me coragem. Os meus adversários tinham o ar de quem já estava à minha espera há muito tempo.
Enquanto mudava de roupa sem demora, apercebi-me que murmuravam acerca do meu estado de sofrimento. Mas (depois) seguiram-se uns atrás dos outros violentamente, sem se incomodar com a minha condição, encorajando-se mutuamente com gritos. Tentavam desencorajar-me tanto através de “taîatari” (empurrões, na falta de melhor tradução) como através de kumiuchi.


As dores e o sofrimento eram indescritíveis mas disse-me que, uma vez que tinha investido ali a minha vida, não desistiria, mesmo que morresse. Nesse dia, para além dos dez discípulos, os praticantes mais antigos do dojo faziam também parte dos meus adversários. E cada um deles fez cinco combates contra mim. Ao meio-dia come-se a refeição. Eu contentei-me a descansar, sem conseguir comer nada. Depois, os combates recomeçaram como de manhã. O meu cansaço era tal que a minha consciência flutuava. Tendo perdido o ânimo, fiz o resto dos combates à defesa.
A minha visão estava obscurecida e quase que perdia a consciência. Pensei: “É aqui o lugar da minha morte”. Foi então a vez de um praticante que era sempre muito agressivo. Uma grande cólera apoderou-se de mim e bati-me com toda a força, dizendo para comigo: “Vem, não acabarei sem antes te partir a cabeça.” Nesse estado, esqueci as dores, pois estava cheio de vontade de destruir o meu adversário. No momento em que lhe ia rachar a cabeça, quando elevava o meu shinai, esquecendo-me completamente do meu corpo, o mestre gritou, com uma voz forte, que parasse. Fiquei muito perturbado com esse combate, sem compreender porque razão o mestre me tinha feito parar.

Obedeci, mas já passava das cinco horas e eu ainda não tinha terminado os meus duzentos combates do dia. Queria continuar a combater. O mestre ordenou-me que parasse, eu segui a sua ordem. Ao parar, o meu espírito relaxou-se, senti grandes dores por todo o corpo e não podia fazer nada. Depois de um curto repouso, consegui, com grande esforço, voltar para casa. Não foi como na véspera. Só com a ajuda da minha esposa é que consegui deitar-me. Não consegui dormir um segundo durante toda a noite.
Na manhã do quarto dia, não conseguia efectuar um só gesto e só me levantei da cama com a ajuda da minha mulher. Foi-me impossível tomar o pequeno-almoço. Pensava apenas na maneira como poderia conseguir efectuar os combates desse dia. Nessa manhã chovia. Mas como não conseguia segurar num guarda-chuva, coloquei uma capa por cima da cabeça e cheguei ao dojo com um andar tremido. O mestre já estava à minha espera e perguntou-me: “Como estás?”. Respondi-lhe calmamente, tentando dissimular as dores que atravessavam todo o meu corpo: “Quero continuar.” Então, o mestre disse: “Tu paras.” Não podia fazer outra coisa senão obedecer-lhe...”
Tesshu estava convencido que Kagawa morreria se ele o deixasse continuar.


CONSIDERATIONS ABOUT BUDO: A STUDY FROM KENDO (III)
In order to illustrate what seïgan-tachigirigéïko really was, we present here the testimony written by a kendoka aspiring to achieve the menkyo-kaîden title. One thousand, four hundred combats during seven days. This artcle was obtained and translated, with the authorization by the author, Kenji Tokitsu sensei, at
http://www.tokitsu.com.

An example of “tachigiri”
“On the first day of April, at six o’clock in the morning, my test began… my adversaries, about ten, followed one after the other, each one fighting until he was exhausted. When one was tired, another one would take his place and they’d change their positions like a wheel spinning constantly. I was in very good shape that day and so I even did some “kumiuchi” (close conbat) with violence. I put on my men first thing in the morning and I only took it off in the end. Everytime the cords got loose, the others imediately tied it firmly, so that I could not rest. I only rested a few moments after the twelve o’clock meal. Once I finished the two hundred combats, round about half past five in the afternoon, I said to myself I could repeat that experience for seven days. But fighting for eleven hours, during a whole long spring day is a hard thing to do.
Among the disciples, an older one called Murakami Masatada, observed every fight. He came to my place, while I rested, and told me that the quality of of the combats hadn’t been good enough. “The master is not satisfied. You must do much better, tomorrow.” I promised him I would fight much bravely on the next day. I later knew that he said the same thing to all my adversaries. The second day also started at six in the morning. Like I promised Murakami Masatada the day before, I tried to smash all my opponents the most bravely I could, using strikes but also throwing them. But each one of the ten will return well rested, one after the other. I could only depend upon my shinai. The sweat kept flowing without me being able to clean it and I started to feel thirsty. Lunch time came and I was glad to rest a little. But I couldn’t eat, so I just swallowed two or three eggs.
After the break I restarted the combats, but I felt a deep fatigue and wasn’t capable of moving like I did in the morning. I didn’t succumb and managed to to finish all my fights by the end of the day. While in the dressing room I couldn’t bend my knees. I went home trying to deal with the pain. I went to bed without concerns about my health, since it was my life I was investing in this process. I just tried to figured out how I was going to face things in next day. On the third day I entered the dojo encouraging myself. My adversaries looked like they were waiting for me for a long time. While changing, I realized they were mumbling about my pain and suffering. But (after that) they followed, one after the other, violently against me, without bothering about how I was, encouraging each others by shouting loudly. They tried to descourage me not only by using
“taîatari” (pushing), but also kumiuchi techniques.
The pain and the suffering were hard to describe, but I told myself, once I had invested all my life in this, I would not give up, even if it killed me. That day, other than the ten disciples, the ancient students were also my adversaries. And each one of them made five combats against me. By mid-day one eats our meal. I was happy to rest only, because I didn’t manage to eat anything. After that, the fights restarted. I was so tired that, at times, my conscience floated. Having lost my valiancy, I did the rest of the fights just defending myself.
My vision was blured and I almost lost conscience. I though: “This is the place of my death.” By then, it was time to face a student known to be aggressive and mean. A great fury took over me and I fought harder, while telling myself: “Come on, I won’t finish here without smashing your head.” In such state of mind, I even forgot the pain, I just wanted to destroy my adversary. When I was about to crack is head wide open, while my shinai was already lifted and my body completely forgotten, the master shouted, with a strong voice, ordering me to stop. I was deeply distressed by that fight, and didn´t understand why he made me to stop.
I obeyed his order, but it was now after five o’clock and I hadn’t finished the two hundred fights of the day. I wanted to keep on fighting. The master ordered my to stop, so I followed his order. As soon as I stopped, my spirit relaxed itself, I felt an enourmous pain all over my body and there was nothing I could do about it. After a short rest, I managed to get home with great effort. But it wasn’t like the day before. Only with my wife’s help was I able to lie down in my bed. I didn’t sleep one second during the night. The morning of the fourth day I wasn’t capable of one single gesture and only got up thanks to my wife’s help. It was impossible to eat my breakfast. My only thoughs were about the combats that day. It was raining, that morning. As I couldn’t hold an umbrella I just put a cloth over my head and I arrived at the dojo with my legs shaking. The master was already waiting for me and he asked: “How are you?” I answered calmly, while trying to hide the pain that was going through my entire body: “I want to go on.” Than, the master said: “You’ll stop.” I couldn’t do anything else than obeying him.
Tesshu was convinced that Kagawa would die if he’d let him continue.






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