3.1.07

EU, O MITORI-GEIKO E UM OUTRO GAJO PORREIRO

INTRODUÇÃO
Oh pá, deu-me para divagar... deve ser da idade, sei lá. Riam, riam, devem pensar que estão todos a ficar mais novos, não?
(Nota: o texto que se segue usa e abusa um bocadinho, mas só um bocadinho, de aspas e parênteses... mas olha, deu-me pr'aí, quéquessá-de fazer?)

O Dicionário de Kendo Japonês-Inglês (o tal de que eu só ainda traduzi as letras “a” e “b”) define assim Mitori-geiko:

“Método de keiko através do qual se observa a prática de outros, aprendendo com os seus bons aspectos/pontos, reflectindo assim e melhorando o nosso próprio kendo.”

E eu, sempre que ouço falar em mitori-geiko, há duas coisas que me vêm imediatamente à cabeça.

A primeira coisa sou eu, treze anitos, sentado no saudoso dojo da UKA (União de Karate do Algarve) no 1º andar do antigo mercado de Faro, durante uma “mão-cheia de tempo”, à espera que a minha mãe acabasse o karate-gi que me estava a fazer. Sim, que nesse tempo não havia karate-gi(s) à venda por todo o lado como há hoje, qu’é que julgam? Não... era muito dif... enfim, adiante.
Enquanto esperava que o dito cujo “kimono”, como lhe chamávamos na altura, ficasse pronto, pouco mais me restava do que assistir às aulas e absorver tudo o que podia para que um dia, também eu, o pudesse pôr em prática.
E, acreditem ou não, aprendi muito.

A segunda coisa que me lembro é um tipo que se sentava ao meu lado, naquele mesmo banco de madeira corrido, e que durante anos a fio, às segundas, quartas e sextas, quando o primeiro treino começava, às 18 horas, imperetrivelmente se encontrava já sentado para o seu mitori-geiko tri-semanal, saindo apenas às 21 quando o treino de graduados acabava.

Simpático, dotado de uma memória visual razoável (ou fruto de milhares de conselhos ouvidos e de milhões de repetições executadas à sua frente) algum tempo depois ele “era já capaz” de aconselhar soluções práticas para certos movimentos e mesmo emendar posições, encadeamentos técnicos e o diabo a quatro. Tudo numa boa, sem pedantices ou arrogãncias.
Em resumo, o tipo parecia uma espécie de livro técnico lá do dojo.

Ora acontecia nesse tempo que os karatecas que treinavam nesse dojo (incluindo moi) tinham por hábito, para além dos três treinos semanais, encontrar-se aos sábados e/ou domingos de manhã no mesmo local para fazer o que apelidávamos “treinos livres”.
Escusado será dizer que "o nosso amigo" passou a "frequentar" também os treinos livres. E aí, sem os constrangimentos de um sensei presente na sala, dava azo, sempre em amena cavaqueira, à sua extensa sabedoria marcial.

Não sei porquê, mas houve uma vez que, naturalmente, acabámos por convidá-lo para treinar, não regularmente, porque ele já tinha declarado várias vezes a sua incapacidade monetária para tal, mas para participar num dos treinos de sábado ou domingo de manhã.

Arranjou-se um karate-gi emprestado e, dito e feito, lá estava ele.

E, como já devem ter calculado por esta altura, os resultados não foram os melhores.


Na sua cabeça, tudo era perfeitamente claro.

No seu corpo, nada.

As mesmas coisas que ele tão eficazmente aconselhara a outros, eram agora chinês (ou japonês?) completo para o seu corpo. As posições teoricamente mais simples eram-lhe, fisicamente, extremamente complicadas de assimilar ou imitar, como se de uma espécie qualquer de (passo o termo) kama-sutra marcial se tratasse.

Não vou “bater mais no ceguinho”, que o rapaz até era um tipo porreiro, mas a conclusão que tirei ao fim de alguns anitos ligado às artes marciais é, pelo menos para a minha prática "budo-ística", bastante importante.

Mitori-geiko pode ser uma boa maneira de aprender desde que não seja um mero “voyeurismo marcial”, mas sim se estiver assegurada, ou pelo menos perspectivada, a existência de uma continuação prática; física, na verdadeira acepção da palavra. De nada serve ver (ou ler/discutir/teorizar sobre) um budo, seja ele qual fôr, se não se praticar em seguida o que se viu, pois, ao observar, estamos apenas a criar uma imagem. A esculpir uma estátua que, até que experimentemos o que vimos, por mais voltas que dê na nossa cabeça, é imóvel, sem vida.

Como dizia o falecido sensei Tsurumaru Juichi (9º dan hanshi de kendo) a propósito da essência do kendo:
“Esculpe uma estátua* e põe-lhe uma alma dentro.”

Eu acredito que essa alma é o keiko.


Não o mitori, outro.

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