14.1.07

KI-O-TSUKE... MOKUSOOOO!!!

O mais provável é que quem assista a um treino de uma arte marcial se depare com um momento que considerará, no mínimo, intrigante.
São dados alguns instantes para que todos, uma vez em seiza, se “acomodem” e a voz que comanda o cerimonial pede atenção... ki-o-tsuke... e em seguida profere a palavra mágica: mokuso.
E tudo se cala, se imobiliza, o próprio tempo parece parar... é como se estivéssemos a entrar num outro mundo... um fanático de ficção científica (como eu), diria até, a entrar num universo paralelo.

Mas então, o que é, e para que serve, mokuso?

Os mais dados às coisas da meditação referirão, sem dúvida, o lado zen* das artes marciais, os mais místicos tenderão talvez para descobrir aspectos da componente zen do budo e os mais práticos evocarão provavelmente alguns resquícios inequívocos e inúteis do zen no... enfim... p’ra frente, com isto.

Quando o meu primeiro sensei me explicou o que era, e para que servia, mokuso achei a explicação perfeitamente simples e racional. Simples e racional demais, até. Também eu, nessa altura, aspirava a uma explicação mais esotérica, mais misteriosa... mais ... zen?... Isso! Sim, mais ZEN.
Mas não. Não me falou de zen nenhum. Que desilusão.

Com o passar dos anos muitas outras ilusões e mal-entendidos relacionados com o budo se dissolveram com a ajuda de leituras, contactos, práticas, etc. Curiosamente, no entanto, a sua explicação permaneceu na minha memória e hoje, para mim, encontra-se de tal forma fortalecida que não consigo pensar em mokuso de outra maneira.
Outras pessoas apresentaram-me (explicaram-me até) mokuso de outras maneiras mas, mais volta menos volta, a coisa acaba sempre por aparecer, por se transformar até, na maneira simples e original que o meu primeiro sensei (de karate) me explicou.

Fazer mokuso no começo da aula, dizia ele, é deixar para trás toda a “bagagem” que carregamos connosco. As chatices do trabalho, a escola, o trânsito, em resumo, a vida fora do dojo. Só depois disso podemos verdadeiramente apreciar a viagem que empreendemos: o keiko.

(Mokuso, às tantas, e vendo de uma perspectiva mais ocidentalizada, é um pouco como fazer o check-in das malas antes de uma viagem.)

O dojo transforma-se, assim, uma espécie de lugar fora do espaço e do tempo.
Um local em que se entra de uma forma ritualizada (anacrónica, diria até) e onde as regras de etiqueta, o comportamento e até o próprio vestuário e os assessórios, talvez muito para marcar esse mesmo isolamento, são, em si mesmo, muito diferentes dos utilizados fora do dojo. Próprios e exclusivos**.

Mas voltemos a mokuso.
Outra das coisas que faz confusão a muita gente é a duração do mesmo. Vinte, trinta segundos e já está. Não parece consistente. Então se meditamos antes da aula, como é que se justifica semelhante espaço de tempo tão curto? Que raio de meditação é essa, tão curta?
É que, apesar de assumir uma posição de meditação, e de se lhe chamar por vezes meditação, e de se parecer muito com meditação... mokuso... hum... não é bem meditação. Confuso? A escola de etiqueta e boas maneiras Ogasawara ryu-reiho, como sempre, explica. A diferença está na atitude.

Segundo dizia Ogasawara Kiyonobu***, no seu livro Nihon No Reiho, seiza deve ser uma postura calmante, mas não de descanso completo. Mokuso deve reflectir aquilo a que ele chama sei-chuu-do (movimento potencial na imobilidade) e não, como acontece na meditação zen, vulgarmente conhecida como zazen, sei-chuu-sei (imobilidade dentro da imobilidade).

O mokuso final deve ter o objectivo precisamente inverso do do início.
Depois, terminada a “viagem”, é hora de ir levantar as bagagens de novo. Só que, desta vez, a pessoa que vai levantar as ditas é suposto que seja uma pessoa melhor e mais bem preparada para enfrentar o mundo que “largou” umas horas antes.

Afinal de contas, o budo não é isso mesmo?



*Só por curiosidade, o lado zen das artes marciais é o lado da frente? Não. O de trás? Não, também não?... hum... agora a sério, acerca da relação entre budo e zen recomendo vivamente o artigo “Sword and zen”, acho que se chama assim, que pode ser encontrado no livro Budo Perspectives, The Direction of Japanese Budō in the 21st Century: Past, Present, Future. (KW publications).
**Quando alguém diz que as regras da etiqueta do dojo são coisas “de japoneses” e que vivemos na Europa, é caso para perguntar porque é que usa um keikogi para treinar em vez de um fato de treino tradicional.
***Dirigente máximo da escola de etiqueta e boas maneiras Ogasawara ryu-reiho, durante parte do Período Edo.

2 comentários:

jorge disse...

Excelente Post!

Adorei a metáfora da "bagagem", sinceramente é mesmo isso que sinto, os problemas, stress do trabalho, etc, ficam para trás a partir daquele momento, passando os nossos sentidos a ficar virados apenas para o keiko, numa perspectiva de constante evoluçao e aperfeiçoamento da técnica (e quem pratica sabe que há bastaaaaaante espaço para evoluír).

Este é um dos (muitos) pontos fortes que me levaram a escolher o Kendo como modalidade a praticar durante uns bons aninhos (espero eu!..)

Usagi-san disse...

Amigo Jorge bons olhos te... leiam.
Há uma vida inteira para evoluir meu caro, tens toda a razzão; "isto" do kendo dá pano para mangas. Mangas, colarinhos e por aí fora.