13.12.04

A IMAGEM E A CONSCIÊNCIA DO BUDO JAPONÊS

Prosseguimos com a publicação dos textos e artigos da autoria de Kenji Tokitsu sensei. Como sempre lembro-lhe que todos estes seus textos podem ser encontrados (em francês principalmente) em http://www.tokitsu.com.

Para os que pensam que a palavra budo significa simplesmente “artes marciais japonesas”, a preocupação de defini-la melhor parecerá, com certeza, redundante. Mas se se deseja captar a natureza do esforço dos mestres antigos, essa definição torna-se indispensável. Os primeiros mestres de karaté oriundos de Okinawa ficaram muito impressinados com os diferentes mestres de budo que encontraram no Japão. Por exemplo, Jigoro Kano, o judo que criou e também a sua personalidade foram factores que os impressionaram fortemente. Gichin Funakoshi, por seu lado, estabeleceu uma forte relação com Hakudo Nakayama, um dos mestres de kendo mais célebres do seu tempo, tendo este último chegado a emprestar-lhe o seu dojo, para que Funakoshi pudesse, assim, ensinar convenientemente o karaté. O zelo desmonstrado pelo homem do sabre influenciou Gishin Funakoshi na sua elaboração do karaté enquanto budo. Mas para que imagem e para que ideia do budo se inclinavam eles nessa altura? Vamos tentar explicar utilizando um exemplo. No número 7 da revista japonesa “Kendo Jidai” de 1987, Ogawa Chutaro, hanshi, 9º dan de kendo, então com 85 anos, conta: “Quando tinha 27 anos, assisti no Butokuden de Quioto a um combate entre dois mestres de kendo célebres: Takano Saburo e Naïto Kôji.” Convém realçar que os mestres de kendo actuais de nível mais elevado, dos quais Ogawa faz parte, colocam esses dois mestres entre os maiores da época moderna, considerando como quase impossível igualá-los, nas condições actuais. Dito isto, voltemos então à narração de Ogawa sensei:
“As pontas dos shinais dos dois hanshi mal se tocavam. Ambos se encontravam no começo em chudan kamae (guarda média). Depois, Takano sensei saudou ligeiramente e assumiu a jodan kamae (guarda alta) levantando o shinai acima da cabeça. Essa guarda em jodan kamae é magnífica... Naïto sensei mantinha o seu shinai en seigan, com a ponta em direcção aos olhos do seu adversário. Dessa posição, ele continuou a lançar poderosamente o seu ki (energia interna) ofensivo, enquanto que Takano sensei lançava também o seu ki, mas a partir da guarda jodan. Os espectadores não faziam o menor ruído e a sala estava calma como terra ensopada em água. O combate prosseguiu silenciosamente. Passaram trinta segundos, depois, um minuto. De súbito, com um ruído seco, o shinai de Takano atingiu o kote (pulso) de Naïto sensei, que permaneceu imóvel, sem demonstrar qualquer problema por ter recebido um golpe. Takano sensei reassumiu a guarda jodan. Naïto sensei permaneceu em chudan.
Depois de fintar um novo ataque ao pulso, Takano sensei atinge o men (cabeça) do seu adversário e depois encadeia cinco ataques consecutivos ao men e ao kote de Naïto sensei. A cada ataque, o ruído seco repercute-se na sala, mas Naïto sensei permanece imperturbável, como se os ataques de Takano sensei não existissem. Ao fim de uns instantes, o árbitro faz sinal para acabar o combate e os dois mestres separam-se. Naïto sensei não executou um único ataque.”
Esta é a descrição do combate modelo (mohan-jiai) efectuado pelos dois maiores mestres de kendo da época. Depois de ter lido até aqui, já nos percebemos que Takano sensei atingiu, por cinco vezes, o kote e o men de Naïto sensei, enquanto que este não executou qualquer ataque. Assim, aparentemente, Takano Saburo deveria ser facilmente considerado vencedor. Continuemos a leitura da descrição de C. Ogawa:
“Durante esse combate, cada vez que Takano sensei tentava atingir o kote ou o men, Naïto sensei projectava o seu ki (ki-atari). Se Takano sensei tivesse conseguido atingi-lo depois de colocar Naïto sensei em posição defensiva, utilizando a projecção da sua vontade de atacar, aí sim, os seus ataques teriam sido considerados válidos. Mas cada vez que Takano sensei tentou atacar, Naïto anulou com o seu ki, o ki de Takano. Eis porque todos os seus ataques falharam, apesar de terem atingido o seu adversário. Não havia qualquer vazio nem na guarda nem no espírito de Naïto sensei. Takano sensei atingiu onde não existia vazio. Atacou e o seu ataque simplesmente tocou no adversário. Mais nada. Se se ataca só por atacar sem se conseguir criar uma aberta na guarda do adversário, esse ataque não é um verdadeiro ataque. Desse modo, se se ataca no momento em que não se deve atacar, como neste combate, é a qualidade do kendo daquele que ataca que está a ser prejudicada. Este é um um ponto difícil do kendo.”
C. Ogawa cita de seguida as palavras de Sosuké Nakano (hanshi 10º dan) acerca desse mesmo combate:
“O combate entre Naïto sensei e Takano sensei era o combate entre o kiai e a técnica. Takano sensei fez um combate com as suas técnicas, enquanto que Naïto sensei combatia com o seu ki. Foi um combate modelo magnífico, para além de qualquer descrição. Fiquei surpreendido por me aperceber da distância que separa o combate com toda a plenitude do ki e o combate com técnicas.”
Que conclusões tirar desta descrição? Efectivamente, tal como diz Ogawa sensei, este é um ponto difícil do kendo. É também um ponto poucos jovens kendokas de hoje conseguem compreender, dizia recentemente um mestre japonês de kendo.

continua...

THE IMAGE AND CONSCIENCE OF JAPANESE BUDO

And now we'll continue to publish Kenji Tokitsu sensei's articles and writings. As usual, let me remind you that all his articles are available (mostly in french) at http://www.tokitsu.com.

For those who think that the word budo simply means “japanese martial arts”, the concern of trying to define it better than that, will, for sure, seem redundant. But if one wants to capture the true nature of the effort of those old masters, that definition becomes indispensable. The first karaté masters from Okinawa were very impressed by the various budo masters they came across in Japan. Jigoro Kano, the judo he created, but also his unique personality, were factors that made a strong impression. Gichin Funakoshi, for instance, established a strong relationship with Hakudo Nakayama, one of the most famous kendo masters of his time, and he even allow Funakoshi to use his dojo, so that he could teach his karaté conveniently. This eagerness demonstrated by the sword master strongly influenced Gichin Funakoshi during his elaboration of karaté as budo. But what was the image and the ideal of budo, those men were inclined to back then? Let’s try to explain using an exemple: in 1987, aged 85, Ogawa Chutaro, hanshi, kendo 9th dan, told the japanese magazine “Kendo Jidai” the follwing: “I was 27 when I witnessed a combat, in the Kyoto Butokuden, between two famous kendo masters: Takano Saburo e Naïto Kôji.” It’s probably important to enhance here the fact that the highest level kendo masters today, whose group Ogawa sensei is part of, place those two masters, Takano and Naïto, among the greatest masters of the modern era, and consider their skills as almost impossible to equal, given the current conditions. Having said that, let’s go back to Ogawa sensei’s narrative:
“The tips of the shinais hardly touched themselves. In the beginning they were both in chudan kamae (middle stance). Then, Takano sensei bowed slightly and assumed jodan kamae (above stance)by raising his shinai above the head. That stance, jodan kamae, is really magnificent. Naïto sensei kept his shinai in seigan, pointing to his adversary’s eyes. From that position he continued to project his offensive ki (inner energy) in a powerfull way, while in jodan kamae, Takano sensei also launched his ki. The spectators didn’t made the slightest sound and the hall was calm as land soaked in water. The fight went on in silence. Thirty seconds went by, then a minute. Suddenly, with a dry sound, Takano’s shinai hit Naïto sensei’s kote (wrist), who remained immovable, without demonstrating any problem because of that. Takano sensei then returned to jodan kamae. Naïto sensei remained in chudan.
After faking another wrist attack, Takano sensei strikes the men (head) of his opponent once, and then starts a series of five consecutive strikes, aiming at both the men and the kote of Naïto sensei. During each one of the strikes, the sound of the shinai hitting the targets echoes in the hall, but Naïto sensei remains undisturbed, as if Takano sensei’s attacks didn’t exist at all. A few moments later, the judge signals the end of the combat and the two opponents brake up. Naïto sensei didn’t even strive one single attack.”
This is the description of the exemplary combat (mohan-jiai) performed by two of the greatest kendo masters ever. Until this point, we have already realized that Takano sensei hit, for five times in a row, both the kote and the men of Naïto sensei, while this one didn’t execute any attack at all. So, apparently, Takano Saburo should easily be considered the winner. But let’s keep on reading Ogawa sensei’s words:
“During the fight, every time Takano sensei try to hit his men or his kote, Naïto sensei projected his ki (ki-atari). If Takano sensei, by using his own will to attack, had managed to hit Naïto sensei, after forcing him to take a defensive attitude, then all his attacks would have been considered as valid ones. But instead of that, each time he attacked, Naïto sensei’s ki annulled his ki. That is why, despite hitting the opponent, all his attacks failled. There wasn’t any void, nor in the kamae nor in the spirit of Naïto sensei. So Takano sensei stroke were there was no void to fulfill. He attack and his strike only managed to touch his adversary. That’s all. If one attacks, without creating first a void in the adversary’s kamae, that attack is not a true attack. In other words, if one strikes, when one should not do it, like during this fight, it’s the kendo’s quality of the one who attacks that is being harmed. This is a very difficult theme in kendo.”
After that, C. Ogawa quotes the words of Sosuké Nakano (hanshi, kendo 10th dan) about that same combat:
“The fight of Naïto sensei and Takano sensei, was the fight between kiai and technique. Takano sensei fought using his kendo techniques, while Naïto sensei used his ki. It was a magnificent exemplary combat, beyond description. I was surprised when I realize the distance that separates fighting with the fullness of ki from fighting using techniques.”
What can we conclude of the narrative? Like Ogawa sensei says, this is a difficult theme in kendo. It’s also a point that “today, few young kendokas can understand”, one japanese kendo sensei said recently.

to be continued...

Sem comentários: