13.5.06

MENINOS CONTRA MENINAS 2

Até tremo quando penso no que vou escrever.
Será que vão pensar que me estou a armar aos cucos? Parecerá muito pretencioso o que vou dizer? Vão entendê-lo como um ataque pessoal?
Dois dedos de reflexão (não muito profunda) e decido que me estou nas tintas para o que possam pensar. Afinal, sempre me estive nas tintas para o que os outros possam pensar.
Entre preocupar-me com o que pensam acerca de mim e desabafar acerca de qualquer coisa que me rói o espírito, o desabafo acaba sempre por levar vantagem... com as inevitáveis chatices e mal-entendidos que isso muitas vezes acarreta, mas... que se lixe, cá vai.

Vou contar-vos um episódio, testemunhado por alguns colegas, que me aconteceu durante o último estágio do senhor Ariga, aqui em Lisboa.

Durante um kihon-waza, aquele em que motodachi fazia sayü-men e kakarite partia mais tarde, fazia sho-men e interceptava o bokuto do primeiro, calhou-me um rapaz que não conheço e que estava a fazer aquilo tudo torto e atrapalhado. Até aí nada de mal, ninguém nasce ensinado. Durante várias repetições tentei ensinar-lhe como deveria fazer o exercício. Em vão. Mas qual não foi o meu espanto, quando perante a minha insistência em ajudá-lo recebo uma resposta cujos termos nunca esquecerei. Disse-me ele:
- Oh pá, tá lá calado que já não te posso ouvir.

Onde é que eu quero chegar com esta conversa toda? Aqui: a transmissão de conhecimentos no kendo não se rege pelas mesmas regras a que estamos habituados. O ensino numa aula de kendo não é como o ensino de uma aula de liceu ou de faculdade. Se alguém me está a facultar ensinamentos acerca de algo que eu estou a fazer, no kendo, só duas hipóteses:

a) - Sim. Concordo com o que esse alguém me diz. Saúdo e agradeço a sua atenção;
ou
b) - Não concordo com o que esse alguém me diz. Saúdo e agradeço a sua atenção;

A gestão do que me foi dito fica para depois e é um acto individual.

De qualquer maneira, exceptuando a fase inicial do ensinamento, a aprendizagem do kendo, e das artes marciais japonesas em geral, não segue um percurso pré-determinado. Pelo contrário, e porque é baseado na prática e não na teoria (a teoria é "apenas" um resultado da prática), é um ensino pontual, chamemos-lhe assim, feito de pequenos "remendos técnicos", aparentemente incoerentes, destinados a progressivamente tapar as lacunas, à medida que estas vão surgindo.

Tudo isto para dizer que as escolhas de um mestre de uma arte marcial, sejam elas decidir que não vai haver equipa feminina ou que as meninas, se quiserem fazer shiai, têm de fazer contra os meninos, são, na minha modesta opinião, tomadas tendo em conta uma série de factores os quais muitas vezes, a nossa mentalidade ocidental e descartiana tende a não apreender pela falta de linearidade que as mesmas muitas vezes contêm.

O problema não é se tem de haver uma equipa feminina. O problema é: faz sentido haver uma equipa feminina? Neste momento, parece-me que não.

Machista. Grita-se um pouco por todo lado.

Não. E eu digo-vos porque acho que não. A primeira vez que o sensei me perguntou se eu não estaria interessado em ir a uns campeonatos da Europa, já eu tinha completado seis anos de treino. Seis. Serei burro. Ok. Mas pela lógica corrente na cabeça de certas pessoas, posso alegar que a situação era perfeitamente igual à das raparigas, hoje.
Nessa altura éramos tantos a treinar regularmente que cheguei a fazer (vários) treinos em que éramos eu, o Alex e o sensei.

Pergunta: porque éramos poucos eu tinha automaticamente direito a ir aos campeonatos? (E eu era um dos mais assíduos...)

Doa a quem doer, deve-se ir a campeonatos quando se está preparado.
Isso significa, em termos muito mais simples, quando o sensei, acha que estamos preparados. E, perante a sua decisão, só nos restam as tais duas hipóteses:

a) - Sim. Concordo com o que ele decidiu. Saúdo e agradeço a sua atenção;
ou
b) - Não concordo com o que ele decidiu. Saúdo e agradeço a sua atenção;

Ah, e pode bem acontecer que ele hoje ache que sim e daqui a um ano/mês/dia ache que não. A lógica japonesa é assim. Não há lugares cativos, meus amigos... isso é nos estádios de futebol, não é no kendo.
Dói? Acreditem, eu sei que dói. Doeu-me durante quatro ou cinco anos, mas é assim mesmo. Faz parte do kendo.

Como diz o senhor Osaka: "Paciência".


3 comentários:

Kodomo disse...

Excelente post. De facto é pena que haja gente a quem os principios de respeito "pelos que vieram antes" (que só por acaso é a tradução da palavra sensei), lhes tenha passado completamente ao lado.

No que me toca peço que nunca pares de me dizer o que estou a fazer mal e em que posso melhorar, como tens feito até agora e pelo qual tens o meu mais profundo agradecimento.

Agora ao ler o facto de terem ocorrido treinos apenas com 3 membros, lembrei-me de uma sugestão. Muitos dos kendokas mais novos questionam-se há quanto tempo pratica kendo o sensei ou alguns dos sempais. Que tal um post que conte a historia do kendo em Portugal? quem o trouxe para portugal? Foi o sensei osaka o primeiro? como eram os primeiros dojos? porque dificuldades passaram?

Um abraço

Tiago

The big boss disse...

Mais uma vez estou completamente de acordo contigo Usagi-san. Não nos devemos meter em competiçoes se não estamos preparados para isso, sempre foi esse o meu credo, não só para competiçoes como para o que quer que seja.

Lamento imenso a enorme falta de respeito a que foste sujeito e lamento também o comportamento de pessoas que deviam ler mais sobre reigi, aparentemente. Já não se fala na humildade porque essa ficou em casa. Mas não é só no Porto, há mais dojos assim.

Desde já aqui fica um pedido de desculpas pela minha ignorância. Mas
digo-te que se alguma vez for necessário corrigir-me ou chamar-me à atenção peço-te que o faças, como sempre fizeste nos treinos.

Obrigada :)
Cumprimentos

Usagi-san disse...

Pois foi... Coimbra! Já não me lembrava. Juro.
Depois daquele men que fizeste ao Roberto no Porto... :-D meu, podes dizer-me o que quiseres. É só o que me lembro de ti... gaaaanda men.