19.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (1ª parte)

Texto da autoria de Kenji Tokitsu sensei (ver site ao lado).

A reflexão sobre a via (do) aparece espontaneamente, à medida que o tempo progride, quando a tensão no sentido da formação do indivíduo se associa à prática da arte marcial. Dito doutro modo, enquanto essa tensão não surge, a prática não contém essa reflexão sobre a via e, consequentemente, não constitui budo. No sentido mais rigoroso do termo, o budo não designa disciplinas particulares, mas sim a qualidade e o conteúdo prático de uma disciplina. Logo, não é porque se pratica seriamente kendo, karaté, jo-do, kyudo...que se pratica budo. É apenas quando a prática contém espontaneamente essa tensão no sentido do auto-formação da pessoa na sua totalidade, a tensão do do, que a prática de transforma em budo.
O budo não é, assim, um género entre as disciplinas de combate, mas a maneira como nos envolvemos numa disciplina da combate em busca da eficácia.
A tensão no sentido da formação do Eu, da maneira como expliquei mais acima, não surge de uma forma abstracta, mas antes apoiada numa sensação corporal concreta. Trata-se de uma sensação corporal que todos os seres humanos podem conceber, qualquer que seja a sua origem cultural. Dito doutra forma, essa sensação é a chave que permite praticar o budo de uma forma completa, ultrapassando os obstáculos culturais.
Que sensação corporal é essa? Em japonês, ela é designada através da noção de “ki”.
Penso que a sensação corporal de ki está frequentemente presente na experiência humana. Mas a forma de interpretação dessa sensação varia consoante a cultura. Por exemplo, o carácter lógico está muito mais desenvolvido nas línguas ocidentais do que na língua japonesa. Mas não há nas línguas ocidentais, e isso é uma dificuldade importante, uma palavra equivalente a ki. Esse termo cobre, em japonês, toda uma série de sensações e de impressões misteriosas, vagas, intangíveis, que tocam qualquer coisa de fundamental no nosso ser e onde que ressaltam uma perspicácia provavelmente arcaica e recôndita. Esse conjunto de impressões dificilmente definíveis por uma palavra está presente na experiência quotidiana, na literatura e nas artes japonesas. Quando se lhe quer dar um nome, chama-se-lhe ki.
A exclusão desse tipo de sensações e de impressões da superfície dos vocábulos, parece-me paralelo ao desenvolvimento do carácter lógico das línguas ocidentais. O pensamento racional desenvolveu-se provavelmente a refutar essa sensibilidade.
É por isso que na prática (das artes marciais), a sensação de ki deve ser captada como ki, sem passar pelo sistema de tradução de palavras equivalentes. Parece-me que para possuir a chave do budo e ultrapassar os obstáculos culturais, é necessário cultivar uma perspicácia em relação à sensação de ki e de se deixar guiar em extensão e em profundidade por essa sensação, através das técnicas corporais de combate.
No kendo, o praticante aprende desde o início o que é o ki de uma maneira simples, através da expressão “ki-ken-tai”. Ao longo dos anos aprende a importância de “seme” no combate. Não se pode descrever de uma maneira simples o que é o seme. Mas é evidente que o nível do praticante se reflecte directamente na qualidade do seu seme.
Geralmente, o seme implica atitudes ou gestos que comunicam a combatividade ao adversário. Mas o seme é bem mais do que as fintas que se utilizam no combate de karaté (N.Tr.: ou de kendo). Quando se faz fintas, mas esses gestos não conseguem criar uma reacção no adversário, então elas não são seme. Pelo contrário, trata-se de seme, quando um gesto, por mínimo que seja, consegue perturbar o espírito do adversário e, num nível mais elevado, quando se consegue “atingir o espirito” do oponente sem efectuar qualquer gesto explícito. Quando se consegue perturbar o espírito do adversário utilizando apenas o ki, sem qualquer gesto aparente, a isso chama-se “kiseme”
É por isso que não se pode definir o seme através da mera descrição de movimentos. O gesto do seme é aquele que transmite qualquer coisa de essencial. Se essa “coisa essencial” não é comunicada, então nenhum dos gestos constituiu seme. Dito doutro modo, se essa coisa é comunicada (mesmo) sem gesto aparente essa trasmissão constitui seme.

Essa coisa essencial, (claro) é o ki.

Próximo capítulo : Uma chave para o budo (2ª parte)

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