22.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (3ª PARTE)

Vimos como, de certa maneira, a visão do praticante se desloca progressivamente de uma preocupação técnica gestual simples para um estado de espírito. Não se deixar perturbar perante o seme e distinguir o verdadeiro do falso nos actos do outro, tudo isso contribui para a aquisição de uma perspicácia apoiada pela força de espírito. Mas seria falso dizer que há uma etapa onde apenas o espírito domina, pois sem técnica corporal não existe combate.
A estrutura do budo é dupla: é preciso estar pronto a todo o momento para desencadear a violência, mas, ao mesmo tempo, manter um estado de lucidez no qual o espírito possa captar amplamente tudo o que se passa ao seu redor. Quando num estado de tranquilidade, a lucidez permite transformar a agressividade em potencial. Um poema famoso de Miyamoto Musashi comunica essa disposição:


“Na torrente invernosa rápida,
a água transparente e calma à superfície,
reflecte a lua como um espelho.”


Mergulhar a mão na água gelada e rápida evoca o frio cortante da lâmina do sabre. A rapidez é o dinamismo do combate. Ao mesmo tempo, a superfície da água dá uma ideia de pureza e calma. Se a superfície se agita, a Lua será deformada. Este poema, frequentemente citado para descrever o estado de espírito do sabre, mostra bem a dupla componente da violência e da calma.
Num nível de combate mais primário, aquele que age com agressividade e violência tem mais chances de obter uma vitória. Mas o nível que devemos procurar no budo corresponde a uma melhor mestria da técnica e do ser. Aí, o estado de espírito reflecte-se da maneira mais refinada. Neste caso, assim que se pensa em atacar com o intuito de fazer mal ao adversário, algo sussurra no mais profundo da consciência que isso é errado. Esse sussurro, por mínimo que seja, é suficientemente importante para travar a espontaneidade do acto. Penso que é nesse sentido que se diz:

“Se o espírito é justo, o sabre é justo; se o espírito não é justo, o sabre não é justo.”

Esse ensinamento é por vezes concebido como moral, mas o seu fundamento é técnico. A arte do combate é uma arte pragmática. Diria que a moral emerge aqui de um pragmatismo levado ao limite. É a particularidade do budo. Não se trata duma associação de valores morais à prática das armas.
Se buscamos agir espontânea e justamente, é preciso libertar o espírito dos entraves da consciência; daí provém o ensinamento do “espírito vazio”.
A este nível, a procura da eficácia desenboca numa espécie de paradoxo porque, se queremos vencer o adversário (o que significa matá-lo no sentido técnico) da maneira mais segura, é preciso não desejar vencer (matar), é preciso ter desapego pela vitória, se a desejamos obter. O que se aproxima da máxima: “É preciso preparar-se para morrer, se queremos sobreviver.”
Desse modo, o acto do combate conduz-nos a uma introspecção e a uma dúvida que nos empurra para a reorganização da nossa pessoa, tendo em vista ser mais perspicaz, capaz de não se deixar perturbar, agir espontaneamente e, precisamente, desencadear as capacidades ao máximo. O processo dessa reorganização é o treino que inclui uma tensão no sentido do auto-aperfeiçoamento. É aí que nasce a prática do budo.

Ao observar assim a evolução da consciência do praticante, podemos perceber que é a partir do momento em que toma consciência da importância do (de uma coisa) que é normalmente invisível, que a sua formação subjectiva começa. Essa coisa, que é a chave do budo, é o ki. Dito de outra forma, enquanto uma pessoa não entender essa sensação de ki na prática das artes marciais e não conseguir construir a sua prática pondo em causa o seu ser, ela não conseguirá seguir o caminho da auto-formação, (como que) por falta de luz num trilho escuro.

É também neste sentido que eu penso que o ki é a chave do budo.

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