20.11.05

UMA CHAVE PARA O BUDO (2ª PARTE)

Ao assistir a um combate de kendo, os praticantes de outras artes marciais deveriam concentrar a sua atenção na maneira como os combatentes cruzam os seus shinais. Veriam que, quando as pontas se cruzam, fazem-no em movimentos subtis, tanto calma, como ligeira e rapidamente. É um combate de pontas, um combate implícito onde os praticantes se batem para ocupar a linha central do adversário, a sua linha vital; para impor a iniciativa de combate, para criar uma ocasião onde o ataque possa acontecer sem erro. O combate mais importante desenrola-se assim, durante essa troca, aparentemente pouco dinâmica.
Eis o significado do célebre ensinamento: “Não ganhes depois de atacar, ataca depois de ganhar”.
“Depois de ganhar”, é precisamente depois de ter ganho o combate de pontas e de seme.
No momento em que os dois adversários se enfrentam, começa a interferência do ki. Os gestos do seme são um meio de projectar o ki sobre o adversário. Se o acto do seme influi sobra a atitude do oponente é porque esse acto toca e faz mexer a percepção directora do adversário. Diria que é uma interferência de ki. Eis porque podemos dizer que, mesmo numa fase onde se efectua o seme sem ter consciência do ki, o essencial do seme consiste de ki.
Penso que esse nível de combate é desconhecido para muitas das disciplinas de combate (judo, karaté, boxe...) nas quais a consciência dos praticantes é limitada aos elementos mais directamente perceptíveis: a velocidade, a força ou a agressividade. É uma percepção muito difícil de estabilizar num combate de percursão como, por exemplo,no karaté. (...)
É portanto no kendo que podemos constatar, de maneira mais concreta, o papel daquilo a que chamamos ki. Nesse sentido, o kendo é uma disciplina privilegiada.

No entanto, não se trata de fazer um elogio incondicional do kendo. Pois antigamente, o kendo incorporava técnicas corporais bem mais ricas e com um âmbito muito mais alargado. Relacionando-o com a sua tradição, o modelo de kendo actual parece-me um pouco incompleto, sobretudo no que diz respeito à formação geral do corpo e às suas regras de combate. Parece-me que são pontos que os praticantes contemporâneos não podem senão ser sensíveis, se desejarem aprofundar o valor do kendo “enquanto budo”.
Em todo o caso, podemos dizer que é no momento em que o praticante começa a sentir vivamente o papel do ki, que a sua prática tende a constituir-se como uma via (do) e que aparece a verdadeira consciência do budo.
Porquê?
Sentir vivamente o papel do ki implica que um adepto pratica o combate buscando “atacar depois de ganhar”. Não se trata de procurar a vitória tentando golpear a todo o custo, mas de acertar um golpe certo, sem erros. Trata-se assim de construir um combate onde a justeza da sensação seja confirmada através de um ataque seguro. Quando atinge esse nível, o adepto confere uma grande importância às fundações do combate, que o mesmo é dizer, ao combate de ki, aquele que se desenrola antes da troca efectiva de golpes.
Se, pelo seme ou pela ofensiva de ki do adversário, nos sentimos atacados e esboçamos um movimento de defesa no vazio, isso significa agir explicitamente contra algo implícito. Nesse caso cometemos um erro no descernimento da realidade. Se nos damos conta instantaneamente, sentimos em nós mesmos uma dissociação, pois o nosso espírito não foi capaz de reter o nosso corpo no seu gesto erróneo. O esboçar do gesto inútil significa que, apesar de tudo, o adversário conseguiu atingir algo. Perdemos assim, nesse instante preciso, a possibilidade de ganhar a iniciativa e fomos derrotados antes de receber o golpe. (N.Tr.: As vezes que isto me aconteceu, ao fazer ji-geiko com Osaka sensei, davam para escrever um blog inteiro. Mas seria tããão repetitivo.)
Quando a percepção está aberta dessa maneira à interferência do ki, perder assim é tão importante como receber um golpe de verdade. E o problema passa a ser: como descernir o verdadeiro do falso, como não ser afectado pela ofensiva do adversário, seja pelo gesto ou pelo ki?
Quando se busca a ocasião para atacar o adversário, usa-se o seme para ganhar o combate das pontas, afim que o adversário desvie a extremidade do sabre da sua linha central, a sua linha vital. O adversário que cede semelhante abertura, apesar da sua vontade, torna-se vulnerável. Nesse instante, se lhe desferirmos o golpe, será uma vitória incontestável. Não sentiremos essa satisfação, se o atingirmos por sorte e ele permanecer imperturbável, apesar de atingido. Diremos então: acertei, mas o golpe não conseguiu perturbar o seu espírito.
Agora, o problema passa a ser: como atingir o espírito do outro, utilizando o ki?

Próximo capítulo: Uma chave para o budo (3ª e última parte)

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